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“Este é um daqueles momentos”... 

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A queda de Cingapura   

Esta frase simples, diria banal, tornada poderosa pela sua repetição até atingir as dimensões de um bordão shakesperiano, martelou os ouvidos do povo britânico, colados aos rádios, naquela manhã de abril de 1942. 

E de uma grande parte do mundo. Cingapura acabara de cair. 

A estratégica base inglesa na Malásia, considerada inexpugnável, sucumbira a um ataque surpresa das forças nipônicas (leia-se japonesas), comandadas pelo ridículo, e nem por isso menos perigoso imperador Hirohito, aliado de Hitler, empenhado na conquista da Europa (leia-se o Mundo). Correndo por fora, o terceiro pateta do terror, o fascista Mussolini, de braço erguido e queixo empinado. Três energúmenos (o termo mais desprezível da minha panóplia de insultos de salão) em que o ridículo de cada um acentuava a assustadora aura de ferocidade e demência. (Chaplin mostrou um pouco disso no seu “O grande ditador”). 

Olhem a data: estamos durante a Segunda Guerra Mundial e a queda de Cingapura estende o tapete vermelho (aqui, de sangue) para a caminhada que leva ao Império dos Mil Anos, a aurora de uma era sombria, nazifascista, ariana, escravocrata. 

Apenas isso. 

Eu soube dessa notícia, ao vivo... quando tinha exatamente dez anos de idade, na garagem de casa, lá nos confins da então África Oriental Portuguesa, Moçambique, para alguns. Se eu entendi a gravidade do que se passava? Claro que não. 

Mas ouvi o rugido de desespero do meu pai. Naquela garagem, há já três  anos, eu o acompanhava religiosamente depois do jantar na escuta dos comunicados de guerra e o ajudava a atualizar com bandeirinhas, nos mapas, a posição das tropas, tanques e navios. No momento, creio, enfrentávamos os tanques de Rommel no Saara. 

Junto com o rugido que terminou num estertor rouco, o desbussolado olho esquerdo azul do meu pai entrou em parafuso, enquanto sob um ataque de fúria incontrolável os mapas e seus apetrechos voaram em todos os sentidos derrubando velhos caixotes e espantando inocentes baratas. 

Soube que vivia o momento mais grave de minha vida de criança. Uma situação só equivalente à da morte do maior ídolo da minha juventude, saído da imaginação debordante de Emilio Salgari: Sandokan, o Tigre da Malásia, pirata e justiceiro, príncipe de Sarawak - justamente  logo dali, bem em frente de Cingapura. Encolhido num canto da garagem, eu solucei  então até o desespero e jurei que jamais o esqueceria. 

Será que Fellini, Eco, Borges, que amaram tanto quanto eu Emilio Salgari e Sandokan, também choraram? Você também chorou, Luiz Fernando Verissimo? 

Foi quando meu pai voltou no dia seguinte, com novos mapas, novas bandeirinhas e alfinetes coloridos. Havia um brilho novo no seu desvairado olho esquerdo, algo de indomável. 

Remontamos os campos de batalha pelas paredes afora, reposicionamos as tropas enquanto ele cantava a plenos pulmões uma de suas paixões, Verdi. Voltamos para a luta, inabaláveis, todas as noites, naquela garagem.

 E tenho a certeza mais absoluta de que meu pai e eu fomos decisivos para a vitória dos Aliados na Segunda Guerra Mundial. 

Aquele funcionariozinho, ex-boxeador, excelente desenhista, dono de uma privilegiada voz de tenor, que enfurnara a sua juventude numa tesouraria soturna para criar uma família que adorava, veio me dar, sem palavras e sem sermões, uma lição que me acompanha até hoje. 

O brilho inabalável daquele seu olho esquerdo. 

Acabei por aprender que a guerra é um campo de batalhas, morte e glória. Aprendi também que é hedionda e se esconde por detrás de bandeiras, medalhas, hinos e rezas. Mas, mais doloroso, aprendi que a assim dita paz, gosta de envolver-se em véus hipócritas, cujos nomes e caras conhecemos. 

E que é preciso enfrentá-las, sempre, guerra e paz, ainda que do fundo de uma garagem suja. 

Dos dias amargos que agora vivemos, poderíamos dizer, parafraseando Churchill: “Este é um daqueles momentos”...  

Não perdemos Cingapura. 

Temo que tenhamos simplesmente perdido a vergonha na cara.