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Duas mães

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Parece evidente para os psicanalistas que a famosa afirmação de Freud – “a mulher não existe” (desculpem, não vou explicar...) - exclui as mães. A Mulher, como um universal de consistência ontológica confiável, talvez não exista para o inconsciente – assunto que, felizmente, é tema para outro artigo. O inquestionável é que, a mãe, essa existe com certeza. Às vezes, com resultados devastadores, sobretudo sobre uma filha.

Pois se não é fácil definir o que seja uma boa mãe, ou pelo menos uma “suficientemente boa” (o que, para Donald Winnicott, seria a melhor das hipóteses), o leitor há de concordar que não seja difícil definir uma mãe má. Basta evocar os contos de fadas centrados nas maldades cometidas por mães malvadas – representadas como madrastas, talvez para preservar a imagem das madonas – contra suas filhas ou enteadas do mesmo sexo. A mãe má é aquela que não queria ter tido uma filha mulher; ou aquela que compete com ela, por ciúmes ou inveja.

Aquela que não tolera a beleza da filha adolescente, por lhe revelar o começo de seu próprio declínio como mulher desejável; ou a que despreza a filha que cresce desajeitada, gordinha e sem encantos, contrariando suas próprias fantasias de ser a mãe da “rainha do baile”. A mãe má compete com a filha pelo amor do pai, sem se dar conta de que são amores diferentes; mas é também a esposa insatisfeita com o próprio casamento que desconta na adolescente, cheia de fantasias, as frustrações daquelas que um dia ela também acalentou.

Por razões diferentes, este é o tema de dois filmes norte-americanos recém-lançados: “Três anúncios para um crime”, de Martin Mc Donagh, e “Lady Bird”, de Greta Gerwin. O primeiro, aliás, levou dois prêmios no último Oscar.

A mãe da adolescente em “Lady Bird”, representada por Laurie Metcalf, lembra as megeras dos contos infantis. Ela critica a filha sem dó. Sua preferência pelo filho é escandalosa. Como é comum entre mulheres que escolhem a vida de donas de casa, ela aposta que o futuro brilhante do filho venha a realizar seus próprios sonhos, frustrados pelas decepções com o casamento (ou seja, com a carreira medíocre do marido, que no momento da ação está desempregado).

A filha é feiosa, pouco popular, amiga da gordinha desprezada na escola. O olhar da mãe a inibe na hora de escolher o vestido do baile de formatura. Tenta uma crítica politicamente correta: “Só quero que você seja a melhor versão de você mesma”; ao que a filha responde, de pronto: “E se esta for a melhor versão de mim mesma”? Bingo.

O filme faz lembrar a afirmação de Lacan de que, em certos casos, a mãe pode produzir “uma devastação” sobre uma filha. A excelente atuação de Laurie Metcalf tem a vantagem de não reproduzir a caricatura da mãe-megera. Parece antes basear-se na norma do teatro brechtiano, que aprendi em uma oficina do grupo teatral de São Paulo, Companhia do Latão: se um ator quer representar um bêbado, não deve exacerbar os soluços e tropeços do personagem e sim centrar sua interpretação no esforço do sujeito para disfarçar sua embriaguez. Laurie Metcalf nos oferece este esforço para disfarçar o desapreço que sente pela filha esquisita, o que obriga o espectador a sentir um mínimo de simpatia pela personagem da mãe de “Lady Bird” – apelido que a filha adota em seu esforço para bater asas. Não vou revelar o final.

Já a mãe representada por Francis Mc Dormand em “Três anúncios para um crime” parece compor uma história diferente. Desde o trailer, o espectador vai saber do que se trata: a personagem, com a expressão distorcida pela fúria e pela dor, faz afixar três outdoors na entrada pequena cidade em que vive. Nestes, denuncia a displicência do xerife em investigar os autores do crime – estupro seguido de morte – que vitimou sua única filha. Sua expressão parece distorcida pela fúria e pela dor.

Pensem nisso: não existe uma palavra para nomear o pai ou a mãe que perderam um filho. É uma situação tão antinatural, tão dolorosa, que não sabemos nomeá-la. Quem perdeu os pais é órfão, que perdeu esposo/a e viúvo/a. Quem perdeu um filho ou filha, trona-se o que? Mais uma vez, me ocorre – “devastação”. Quem perdeu um filho torna-se uma pessoa devastada.

A situação é tão dolorosa, a atuação da atriz nos apresenta uma mulher tão destruída pela dor e pela revolta, que tomamos imediatamente seu partido. O ambiente de uma cidade pequena, machista e provinciana, a indiferença das autoridades, as ameaças que ela enfrenta, tudo conduz o espectador a se sentir diante de uma “mãe coragem”. Só no final o espectador é levado, por meio de alguns flashbacks, a cair na real. A mãe é amarga, divorciada de um homem que se casou com uma garota da idade da filha adolescente. As duas brigavam como... como mãe e filha. E se diziam coisas cruéis e se “rogavam pragas...” principalmente a mãe. Deixo que o leitor imagine, se quiser, o que ela teria dito à filha que saiu de mini saia e blusa curta, na noite em que foi estuprada e assassinada.

Penso que a historiadora Elisabeth Badinter acertou em cheio ao desmistificar, na década de 1980, “O mito do amor materno”.