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O realismo fantástico da Justiça brasileira

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No livro “Cem Anos de Solidão”, de Gabriel García Márquez, o filho de Aureliano Babilônia nasce com um rabo de porco. A situação, irreal, é encarada com certa normalidade pelos personagens, dentro do contexto da história. Essa é a principal característica do realismo fantástico: a inserção de elementos mágicos como algo habitual, dentro de uma narrativa com características realistas. A recente prisão de Lula reuniu um arcabouço de elementos que mais parece ter saído das páginas de um livro do Prêmio Nobel colombiano. A surreal mistura de políticos, magistrados e generais nos faz encarar a situação brasileira de forma mais fantástica que real e com um fim incerto e perigoso. 

Sérgio Moro que, desde as fases processuais preliminares, protagonizou uma rivalidade digna de ficção com o réu, sem se dar conta de que, em uma narrativa estritamente realista, essa relação interpessoal deveria tê-lo deixado impedido, continua trazendo ares fantásticos à realidade brasileira. Não dando por exauridas as suas funções após emitir o mandado de prisão, o juiz – que não é de execução penal – impediu Lula de receber visita de uma comitiva composta de nove governadores e 3 senadores da República. O magistrado, que deveria representar a Justiça cega, traveste de imparcialidade uma clara rixa pessoal e política a Lula, reforçando o discurso de que o ex-presidente é um preso político. Mas com o antipetismo em alta, a parcialidade escancarada transformou Sérgio Moro em um herói nacional. 

No STF, o absurdo se confunde ainda mais com a realidade. Após o julgamento do HC de Lula, julgado sob a mira das baionetas do general Villas Bôas, onde Rosa Weber negou a medida mesmo afirmando que prisão após condenação em segunda instância é inconstitucional (como dizem, o Brasil não é para amadores), a peleja parece estar longe do fim. O ministro Marco Aurélio Mello adiou a apreciação de medida cautelar que poderia rever o caso, em tese, das prisões em segunda instância. Para tornar tudo mais surreal, o pedido de liminar foi impetrado pelo PEN, um partido de direita e de oposição a Lula. 

Como o rabo de porco que nasce em uma criança, estamos  aprendendo a aceitar, com certa naturalidade, uma anomalia brotando em nossa já frágil democracia. O país entendeu como aceitável uma clara ameaça do Exército à instância máxima do Judiciário brasileiro: ou permitiam a prisão de Lula ou voltava a ditadura. Perseguição política e a presença cada vez mais constante das Forças Armadas começam a nos lembrar, a cada dia, os momentos que antecederam o golpe de 1964. A Polícia Federal pode transferir Lula da superintendência de Curitiba para um quartel do Exército. Os desejos de quem andou pedindo a volta da ditadura podem, por fim, acabar se tornando realidade.

A narrativa de realidade e fantasia passa por duas vias na política brasileira. A realidade é que Lula é líder em todas as pesquisas eleitorais. A fantasia é a tentativa de trajar esse momento como um devido processo legal, isento de questões políticas ou mesmo partidárias. O realismo fantástico brasileiro permitiu até interromper a tradicional morosidade da Justiça. Não custa lembrar que Lula foi julgado pelo TRF4 em seis meses, enquanto, após 12 anos passados do mensalão tucano, o tribunal não concluiu o julgamento de Eduardo Azeredo. Mas apenas o tratamento diferenciado conferido aos tucanos pela Justiça mereceria um livro inteiro de Gabriel García Márquez para narrar.

* Jornalista, publicitário e especialista em Direito Público