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Os 25 anos da Ação da Cidadania

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Quinhentas mil pessoas morreram de fome em dois anos. Três décadas depois, mais 100 mil. Milhares de pessoas presas em campos de concentração. Não se trata do Holocausto. Essas 600 mil mortes ocorreram no Nordeste brasileiro, entre 1877 e 1917. Os campos de concentração foram construídos no Ceará, em 1932, para confinar 16 mil flagelados que chegavam a Fortaleza fugindo da seca. 

Exemplos assim mostram a onipresença da fome na nossa História. Responsável pela morte de centenas de milhares de pessoas, sua causa nunca era revelada. E quando era, o culpado não podia ser punido: a natureza ou a vontade de Deus. Foi assim até um nordestino finalmente revelar o verdadeiro culpado: o próprio homem. Para Josué de Castro, “a fome não é um fenômeno natural, mas um produto de estruturas econômicas defeituosas”. 

Autor de “A geografia da fome”, Josué era a maior autoridade do mundo sobre o tema. Foi, por isso mesmo, cassado no golpe de 1964. Tragicamente, o único homem com a possibilidade concreta de erradicar a fome no país faleceu no exílio, amargurado pela consciência de que a inanição ainda mataria muitos brasileiros. 

A ditadura também enterrou a reforma agrária, condição fundamental para qualquer país alimentar a sua população. Os generais acharam que o melhor modelo a seguir era o das capitanias hereditárias e, em poucas décadas, um país de dimensões continentais viu a migração, do campo para a cidade, de 60% de sua população, o maior êxodo da nossa História. Foi o início da expansão desmedida das periferias, crescimento das favelas, aumento do desemprego, da pobreza e da violência, enfim, um dos resultados do chamado “Milagre Brasileiro”. 

A fome seguiu trabalhando em silêncio. Produziu óbitos em recém-nascidos e gerações inteiras de famílias com agudo déficit nutricional. Quando o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) finalmente acordou o Brasil, em 1993, era tarde: 32 milhões de pessoas já passavam fome. Mas desta vez a sociedade sabia qual era a causa e se mo bilizou. Nascia, assim, a Ação da Cidadania, convocando a sociedade a fazer a sua parte, e cobrando do governo ações concretas. O símbolo dessa mobilização, o Natal Sem Fome, provava que se a população podia arrecadar toneladas de alimentos, o poder público poderia fazer muito mais. 

O slogan “Quem tem fome tem pressa” deixava claro a urgência de se criar políticas públicas que levassem em conta todos os brasileiros. Isso só ocorreu quando outro nordestino chegou à presidência do Brasil e tirou o país do Mapa da Fome da ONU, em 2014. 

Não faltaram críticas ao Bolsa Família, mesmo depois da redução de 80% no número de pessoas abaixo da linha da pobreza. Quem criticou nunca esteve diante de uma mulher grávida, cujo bebê ainda não nasceu, mas já sente fome porque o corpo da mãe não tem condições de nutrir o feto. Nem esteve numa casa onde as crianças choram de fome, e os pais choram por seus filhos não terem o que comer. Se esses brasileiros não merecem uma pequena ajuda do Estado, quem merece? 

Mas a Ação da Cidadania se encontrava numa encruzilhada. Vencida a luta contra a fome, qual seria a função da entidade, agora? Um encontro nacional decidiu que o foco passaria a ser a capacitação através da inovação. E, com alegria, após o 15o Natal Sem Fome, paramos de arrecadar comida. 

Mas a fome não abre mão do seu reinado facilmente. 

Uma crise aguda afunda a classe média e arranha a classe alta, mas nas famílias logo acima da linha da pobreza o efeito é devastador. Bastaram dois anos para se retroceder em direção ao Mapa da Fome da ONU, do qual havíamos saído há apenas quatro anos. A fome voltou e, com ela, o Natal Sem Fome. A campanha arrecadou 900 toneladas de alimentos, mas é difícil descrever a indignação que a sua reedição gerou na entidade. Ao completarmos 25 anos, vamos realizar o maior Natal Sem Fome da história, sempre na esperança de que será o último. 

Exportamos alimentos para o mundo, mas temos 10 milhões de pessoas na extrema pobreza. Como no passado, o problema não é a falta de comida, Deus ou a natureza. O problema somos nós. 

* Presidente do Conselho da Ação da Cidadania