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Os 90 anos de Luiz Carlos Barreto

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Luiz Carlos Barreto completa, hoje, 90 anos de idade, está firme e cheio de esperança, assinando manifestos contra o fascismo, lutando com o povo brasileiro para que o país tenha de volta a democracia usurpada, pelejando por novas conquistas para o cinema brasileiro, realizando vários projetos de longas-metragens e seriados. Para completar, prometeu-me fazer a direção de fotografia de um longa meu chamado “O Cego e o Mar”. Barreto é um conhecedor e grande admirador do mítico cantador nordestino Cego Aderaldo, tema desse filme. 

Esse espírito irrequieto, nascido no norte do Ceará, marcado pela têmpera austera e guerreira da cultura sertaneja, desde cedo acostumou-se a varar mundos, a descobrir o que havia por detrás de serras, de horizontes e de mares. Dizem que é do cearense esse destino de ser-mundo, de desconhecer fronteiras, de buscar em cada homem do planeta o seu irmão perdido em arribada anterior, que todos quase todos se sucedem no mesmo destino peregrino – desde os índios tapuias até os tempos ditos pós-modernos. 

Sempre que Barreto vem ao Ceará, nos encontramos e vamos tomar sorvete no Juarez. Todo homem nascido sob o sol escaldante do sertão tem a água como dádiva de Deus e o sorvete como uma das maravilhas do mundo. Depois vamos ao restaurante do Faustino, tomar café no Asteca, com tempo para a prosa boa e descompromissada que se dissipa nas asas do vento Aracati.

 Nessas conversas, muitas vezes disse: Barreto, na sua velhice, volte para o sertão. O sertão profundo lhe reclama, e o homem se completa no reencontro com a sua terra de origem. Ele disse que ia pensar nisso, depois que se aposentasse. Mas quando? O homem não se aposenta nunca; com 90 anos está com muitos projetos de novos filmes e, feito Manoel de Oliveira, chegará aos 106, com energia e criatividade de dar inveja a menino banzeiro. Barreto traz no espírito a marca destemida do vaqueiro, a forja guerreira do jagunço de Canudos, a doçura dos violeiros e cantadores de feira, a sagacidade do negociante e o empreendedorismo vanguardista herdado de Delmiro Gouveia. 

Nascido sob a luz intensa do sertão, percebeu que, com essa luz, poderia recortar a escuridão do seu tempo, que a fotografia poderia revelar a magia de mundos e ser também um instrumento de construção da identidade de uma nação. Em “Vidas secas”, do saudoso Nelson Pereira dos Santos, revisitou os contrastes da xilogravura nordestina talhada na umburana e inventou uma arqueologia de imagem tropical que o tornaria famoso, ao lado de grandes fotógrafos do cinema brasileiro como José Rosa, Aronovich, José Medeiros e Edgar Moura, entre outros nomes que viraram mitos. Um dos pais do chamado Cinema Novo, esteve envolvido em quase todos os movimentos de renovação das artes brasileiras. Foi ele quem batizou o movimento engendrado por Caetano, Gil, Torquato, de Tropicalismo. No Ceará e no Nordeste, lutou por novos centros de produção audiovisual, foi um dos grandes mentores da chamada Lei do Audiovisual e da chamada retomada do cinema brasileiro. Juntou-se a outros desbravadores na criação da Ancine e ajudou a dar ao cinema brasileiro um novo status, em meio a muitas vitórias e algumas poucas derrotas (que serviram para curtir a sua alma para novas pelejas). Um guerreiro está sempre aprendendo, e a vida é a sua maior lição. 

Ainda me lembro, como se fosse hoje, eu, ainda um jovem, chegando ao Rio de Janeiro, com as latas de negativo do filme “O Caldeirão”, filmado em mutirão, por um coletivo. Bati na porta do famoso e mítico Barretão. O calor e o afeto com que ele me recebeu deu-me forças novas. Foi ele que me ajudou na finalização desse primeiro longa-metragem. Comecei a profissão onde estou até hoje. Em troca, nunca nada me pediu. Mas, com certeza, sabe da minha gratidão. Se eu pudesse, hoje, iria ao Rio de Janeiro e levaria uma caixa de isopor com o sorvete de Juarez: umbu-cajá, seriguela, manga, caju, murici e graviola. Acompanhando um bilhete: Feliz aniversário, amigo!

 * Cineasta, poeta e escritor