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O país do ‘Fenemê’

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Não sei qual foi a origem, já que aprenderam a falar português na mesma época. Poucos anos separam as fundações do Rio de Janeiro e de Salvador, nossas mais antigas cidades. Contudo, até recentemente, baianos e cariocas divergiam no soletrar. ABC, D, e a partir do Efe, ou Fê, como preferem os setentrionais, surgem saborosas sonoridades: um simpático inepessi baiano não passa aqui de um reles INPS.

Malgrado a diferença, Brasil afora, três letras rodavam soberanas: FeNeMê, sigla da Fábrica Nacional de Motores, ostentada à frente dos veículos, viraram o codinome dos caminhões que dali saíam.  A FNM ficava em Xerém e foi uma das benesses getulistas em terras do genro, Amaral Peixoto, assim como a CSN, a Álcalis e o Saneamento da Baixada Fluminense.

Embora tenha sido pioneira, não se pode dizer que foi com ela que começou o incrível predomínio do transporte rodoviário, que, aliás, acaba de exibir toda a sua pujança na recente greve, ou locaute. Ou as duas coisas, sabe-se lá. Washington Luís já fraseara sua tolice famosa, mas credita-se a JK o desmantelamento das ferrovias e o predomínio do transporte rodoviário: meia verdade. 

Já vimos que no Estado Novo, grandes avenidas atravessaram o Rio de Janeiro, enquanto o Fundo Rodoviário Nacional e o DNER (atual DNIT) terão sido um tardio presente natalino, dado pelo regime deposto em outubro de 1945, porém embrulhado e deixado no sapatinho da nação, em 27 de dezembro, pelo sucessor José Linhares, presidente provisório. A conferir.

A gênese rodoviarista é, contudo, mais velha e importada: em 1916, o presidente Wilson assina o primeiro “Federal Aid Road Act”, antecipando-se ao ambicioso “Interstate Highway Act”, de 1956, cujo objetivo era criar um sistema “free way, coast to coast”.  Consolidava-se o dito de Henry Ford: “um carro para cada trabalhador”, o que pressupunha estradas, avenidas e subúrbios – no modelo americano, bem entendido.  Carros, desenhando as cidades.

Só então, Juscelino, nos trópicos, foi essencial: alavancou a indústria paulista de veículos e eivou o país de rodovias.  Caminhões, desenhando o território. A diesel. 

Em 1976, sob o impacto da crise do petróleo, uma portaria ministerial proibiu carros a diesel: gasolina subsidiando seu uso, exclusivo em veículos de carga ou coletivos. Porém, a inacreditável manada de picapes, travestidas em carros de passeio e liberadas para nossas singelas ruas, por nova portaria de 1994, atropelou impiedosamente essa tese. Mamutes passaram a ir ao cinema e levar criança à escola. Subsídio? É ruim... Mudemos de assunto, pois. 

Em Amsterdã existe um museu: Tropenmuseun, que reúne peças originárias de rincões pitorescos, para os padrões holandeses. Para testar seus critérios fui checar o nicho brasileiro e deparei-me com três instalações: um varal de livros de cordel, um baita despacho de encruzilhada e um painel, forrado de para-choques de caminhão, com frases típicas, o que me revelou uma dimensão cultural inusitada. O recorte museográfico estrangeiro mostrou-me a que ponto a rodovia se imiscuiu nos nossos corações e mentes.

As frases, por vezes antológicas, têm preferências. As maiores vítimas: sogras e maridos cornos. Mulher é, simultaneamente, desejo e algoz. Daí tanta sofrência no rádio da boleia.

Nos últimos tempos, porém, Jesus tem demonstrado um avanço inexorável sobre os para-choques e é tido como responsável por farta distribuição de veículos. Pelo número de “Foi Jesus que me deu”, “Devo ao Senhor” e frases desse naipe, quase que se pode creditar a Deus as causas e os efeitos do rodoviarismo.  

Dessa forma, descrentes de que o governo apresente um modelo, a médio prazo, menos dependente do petróleo, e, a curto, economicamente suportável para quem dele dependa, puxemos reza forte. 

Quem sabe o Altíssimo reveja sua política de transportes e coloque o país nos trilhos.

* Arquiteto, urbanista DsC.