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Sobre feminicídio e bola de cristal

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O assunto é árido, pesado, cortante. Como a faca que matou a jovem Tauane Morais, de 23 anos, em Samambaia, no Distrito Federal. Dias antes de matar a mulher com 23 facadas, o marido da vítima a havia agredido e quebrado vários eletrodomésticos de casa na presença do filho de 2 anos. Após denúncia da vítima, o criminoso chegou a ser detido, mas acabou solto. Fim da história de ameaças e violência: o feminicídio de Tauane. Ao ser questionado sobre a soltura do potencial criminoso, o juiz alegou não ter bola de cristal para prever o homicídio. Ora, mas a Justiça não trabalha com bolas de cristal! O instrumento da Justiça é nada mais, nada menos, que a legislação. Elementar.

O artigo terceiro da Lei Maria da Penha define: devem ser asseguradas às mulheres as condições para o exercício efetivo dos direitos à vida, à segurança, à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, à moradia, ao acesso à Justiça, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania, à liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar e comunitária. Pelo desfecho do caso é muito fácil concluir que Tauane, ao lado do marido que a matou com 23 facadas – a repetição desse número de sangue se faz importante para que a profundidade do crime tenha o devido destaque – era privada de direitos como segurança, liberdade e dignidade, para enumerar o mínimo. Logo, até mesmo uma vidente charlatã com uma bola de cristal falsa seria capaz de antever o assassinato da jovem mãe, bastava que substituísse a letra fria da lei – ou a superfície gélida do cristal – por um pouco de humanidade e empatia.

A jovem Tauane, morta pelo marido com 23 facadas – de novo a repetição para enfatizar a violência – comprova os números assustadores de homicídios de mulheres no Brasil: a cada 2 horas uma mulher é assassinada no país. A cada dia, duas mulheres são vítimas de homicídio. Em 2017, mais de quatro mil mulheres foram alvos de crimes dolosos. Desses crimes, cerca de mil foram considerados feminicídios, cometidos pelo simples fato de a vítima ser mulher. A história de Tauane impressiona, o argumento do juiz que concedeu liberdade ao agressor revolta e os números assustam. Todos esses verbos e reações são ligados ao feminicídio, que assombra. É impossível abordar o tema feminismo/machismo sem colocar luz sobre o feminicídio. O termo inicial – “femicídio” – foi utilizado pela primeira vez em 1976, no Tribunal Internacional de Crimes contra Mulheres, em Bruxelas. Foi resgatado posteriormente em 1992, pela escritora feminista sul-africana Diana Russell, no livro “Feminicide: The Politics of Woman Killing”, que escancarava a não acidentalidade de mortes violentas de mulheres.

O mais preocupante ao analisarmos, ainda que de forma breve, a história do feminicídio, é a constatação de que os números ainda são grandes demais num momento em que as mulheres usam todos os meios possíveis – como manifestações nas ruas, protestos públicos, redes sociais – para lutar pelo empoderamento do gênero. O lado positivo, entretanto, é o avanço da legislação, que considera o feminicídio crime hediondo, ao lado de outros tão bárbaros como estupro, genocídio e latrocínio. A pena varia de 12 a 30 anos de reclusão. 

O marido assassino de Tauane tentou se suicidar após cometer o crime. Cravou cerca de vinte golpes de faca contra o próprio corpo e está internado em estado grave. Se sobreviver, espera-se que – aí, sim – a Justiça siga a letra fria da lei para que a morte da jovem mãe não fique impune como muitas no Brasil.

* Jornalista