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A bossa, a musa e a luta

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Uma jovem senhora elegante, que fez história na cultura brasileira e mundial, de voz baixa e violão marcante, completa 60 anos esta semana: a Bossa Nova. O movimento reuniu uma geração de músicos, poetas, intelectuais e estudantes ao redor de uma melodia meio-samba-meio-jazz que embalava reuniões intimistas na Zona Sul carioca. Um apartamento na Avenida Atlântica, em Copacabana, era ponto de encontro desses jovens: o local em que morava a adolescente de franja, voz macia e sorriso meigo, Nara Leão. Filha de um advogado e uma professora e irmã da jornalista Danuza Leão, Nara aprendeu cedo a tocar violão e levou para casa a turma que comporia e gravaria a música “Chega de saudade”, considerada a primeira filha da Bossa Nova, que ficaria conhecida mundialmente e seria gravada e regravada mais de uma centena de vezes.

“Chega de saudade” também é título do livro em que o jornalista Ruy Castro conta a história da onda sexagenária, uma trajetória repleta de fortes emoções, amores, dores, separações, dramas. Tudo cercado por muita voz suave e violão tocado com maestria. O livro explana em detalhes o papel da jovem Nara Leão e dos demais integrantes no movimento. Além de abrir sua sala para o grupo, a moça dedicou-se e cantou cheia de disciplina e graça as composições de Tom, Vinicius, João Gilberto, Ronaldo Bôscoli, entre outros. Desse último, foi namorada e noiva. Rompeu de forma turbulenta, quando descobriu uma das infidelidades do artista, que teve um caso com Maysa e casou-se com Elis Regina.

Elis e Nara eram assumidamente rivais. De coração e de música. Era o quase sussurro de uma versus o vozeirão da outra. Várias reportagens da época mostram que a Pimentinha criticava a passagem da moça de voz suave por várias escolas culturais brasileiras. No livro “Quem foi que inventou o Brasil? - a música popular conta a história da República”, o jornalista Franklin Martins mostra, entretanto, que esse trânsito não foi exclusividade de Nara Leão. A publicação contextualiza que, no início dos anos 60, alguns dos principais nomes da Bossa Nova, como Vinicius de Moraes e Carlos Lyra, foram contagiados pelo crescimento dos movimentos sociais, e passaram, de forma crescente, a compor sobre temas políticos. Com os ventos da Bossa Nova na direção contrária à ditadura, Nara Leão estreou no Teatro Opinião, com textos e músicas de protesto. Era final de 1964, ano do golpe militar no Brasil. A trajetória política da Bossa Nova e da maioria dos seus integrantes era um caminho sem volta.

A musa do movimento mudou sua atuação musical ao longo de toda a carreira. Da voz macia ao violão num apartamento da Zona Sul carioca, passou a cantora de protesto em teatros de resistência e festivais dentro e fora do país. Com toda a doçura que mostrava diante das câmeras, juntou-se a outros artistas que não se calavam diante da ditadura militar. Gravou “A banda”, de Chico Buarque. Transitou entre os tropicalistas. Mas o título de musa da Bossa Nova grudou na voz, no sorriso e na suavidade de Nara.

Além de Ronaldo Bôscoli, namorou Roberto Menescal, casou-se com os cineastas Ruy Guerra e Cacá Diegues. Nara Leão cantou, protestou, usou e abusou da doçura. E, na semana de aniversário de 60 anos da Bossa Nova, a homenagem em forma de artigo vai para a mulher “retrato da Bossa Nova” – Nara Leão – que gravou seu nome na história cultural e política brasileira, cantando baixo e segurando um violão. Sim, existem várias formas de luta feminista. E vários instrumentos. 

* Jornalista