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Causa mortis: desenho urbano

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Cidades ostentam um paradoxo de origem. Permitiram que a humanidade reunisse tal contingente, incomparável em relação ao anterior à urbanização, mas também criaram inacreditáveis malefícios. 

Pestes se espalharam, incêndios as consumiram, cercos se prolongaram e bombardeios as dizimaram, mas tudo isso só foi possível porque cidades concentraram as gentes, que se tornaram vassalos de seu próprio êxito como espécie. Somos, malgrado os críticos, inegável sucesso de público.

Porém, quão saudáveis ou inexpugnáveis pareçam, algo torna as urbes mortíferas: sua forma, em si, soe ser letal. Enquanto o organismo cresce e seu desenho se sofistica, mais ameaçador é o tecido urbano.

A dialética perversa impôs a velocidade, e o simples deslocar dos seres transformou-se em algo hediondo, capaz de matar tanto quanto pestes, guerras ou sinistros. 

Os urbanistas – já os sabemos sacerdotes – julgamo-nos capazes de dominar o ser que urdimos, mas liberaram-se forças incontroláveis.

Hierarquia viária, por exemplo, algo que pretendia domar o tráfego automotivo, ao se indicar diferentes larguras de pistas, eliminar cruzamentos ou criar passagens seguras, resultou apenas no cerceamento do livre caminhar. 

No Século 20, algumas inovações tentaram domar a criatura: surgem autopistas disfarçadas de boas moças – os park-ways – dos quais o Parque do Flamengo é um exemplo, e unidades de vizinhança, um modelo reconhecível nas superquadras de Brasília e abastardado nos condomínios da Barra.

Concebidas por Clarence Perry, as unidades deveriam funcionar como um organismo estruturado em torno de um equipamento urbano, a escola, que o dimensionava. Debruadas pelo fluxo mais intenso, eram entremeadas pelas secundárias, que levavam ao centro comunitário e atendia às áreas residenciais.

O próprio Perry, demiurgo surpreso e assustado, alertava para o crescimento do número de carros e a largura das vias externas, o que transformava as unidades não mais em elementos formadores de um conjunto articulado, mas ilhas separadas por limites intransponíveis. Era bênção, mas desgraça.

Recupero, hoje, todos esses conceitos, por ter sabido da triste notícia de que o engenheiro José Chacon foi vítima de atropelamento, em Brasília. 

Conselheiro federal de sua categoria, como eu próprio o sou dos arquitetos do Rio, somos conhecedores das ameaças que o contínuo fluir do tráfego, da capital mais racionalista do mundo, representa, mesmo considerando a grande contribuição que medidas educativas, e coercitivas, trouxeram, durante a administração de Cristóvam Buarque. De fato, faixas para pedestres são rigorosamente respeitadas.

Porém, nem por isso o direito à velocidade deixou de ser sagrado e atravessar uma via expressa, ainda mais se ela se chama Monumental, ou se desconsideramos os trajetos predeterminados, jamais em linha reta, feitos de subterrâneos e passarelas, que o desenho de lá nos impõe, torna-se atividade de alto risco.

Em uma dessas tentativas, perdemos um profissional reconhecido e ferrenho defensor do meio ambiente e das águas, em particular. 

O Brasil assassina cerca de 40 mil pessoas por ano no trânsito. Sua maior metrópole, com seu reconhecido e eterno engarrafamento, mata nove seres humanos, por 100 mil que a habitam. Pois a capital federal ostenta um índice de 16 mortos para o mesmo contingente, ou seja, quase o dobro de São Paulo. Trânsito lento também é alento.

Por fim: saudades da Perimetral. Feia, talvez. Mas jamais, depois de pronta, matou ninguém e ainda proporcionava sombra.

E, enquanto ali existiu o Mercado, peixe frito e cerveja gelada. 

Mas disso falaremos em breve, pois enquanto o urbanismo modernista protagoniza atropelamentos de pedestres, o urbanismo mauricinho atropela as demais formas de vida urbana. 

* Arquiteto; urbanista DSc