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A esquerda e o alvo

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É verdade que da centro-esquerda à esquerda da esquerda tem se falado em taxar lucros e dividendos, bem como a herança. Mas o buraco é mais embaixo. O domínio da lógica financeira, do capital a juros e de seus derivativos ficcionais sobre a estrutura produtiva e, cada vez mais, sobre a gestão e sobre os serviços públicos, impõe uma resposta à altura daqueles que se encontram à esquerda do espectro político. Esse domínio é o que move a atual “máquina de moer gente”, de flexibilizar direitos sociais e ambientais; exterminar pobres e negros; esterilizar o Estado na sua função pública e o governo na sua forma democrática; e de eternizar e ampliar a precarização da vida na periferia dos grandes centros. 

Eis o alvo, cuja nitidez ainda parece faltar, capaz de conferir sentido à esquerda neste limiar de século. Construir uma resposta à altura desse poder hipertrofiado das corporações, que parasita as instituições políticas, é algo que vai além – sem dispensá-las – de saídas meramente tributárias, à la Piketty. Talvez o atual desnorteamento da esquerda se deva, mesmo, a uma declaração antecipada de impotência diante de um inimigo que se agigantou nas últimas décadas.

 Ao se ocupar, hoje, da luta contra a onda de conservadorismo, nas suas mais diferentes e nefastas formas, a esquerda parece esquecer as lições da história, de que os “fascistas” são “cães de guarda” das classes proprietárias, em seus momentos de crise em direção a uma maior acumulação e concentração de riquezas. A pretensa saída (neo)desenvolvimentista peca, quando menos, por não reconhecer o quanto, no atual estágio do capitalismo monopolista, a suposta separação entre setores produtivo e financeiro não mais se verifica. Pois bem, o combate explícito ao domínio corporativo-financeiro passa, inapelavelmente, por resgatar o Estado das mãos privadas. Denunciar a captura dos principais órgãos do Estado pelos interesses financeiros. Ter a coragem e capacidade para reformar a “reforma do Estado”, em favor de uma reestatização, com controle público, de serviços essenciais como saúde, transporte, saneamento e educação. Combater frontalmente o latifúndio urbano e rural, propagando a função social da propriedade. Reorientar o sistema financeiro nacional em proveito da desconcentração e descentralização do crédito e de capitais, ao mesmo tempo revisar os contratos da dívida pública em termos aceitáveis a uma gestão soberana do fundo público. No atual quadro que antecede as eleições de outubro, cuja própria legitimidade do pleito encontra-se em questão, surpreende a vacilação das forças progressistas, para não dizer silêncio, seja na esfera nacional ou estadual, no combate à captura do Estado pelas corporações financeiras. Será que a formulação mais à esquerda alcançada nas Américas ficou, mesmo, a cargo do democrata Bernie Sanders e de suas propostas contra Wall Street? 

Algo mais dramático se considerarmos que o “Golpe de 16” foi patrocinado e sustentado por corporações internacionais, que renovaram o interesse pelo país, em meio à crise de 2008 e às oportunidade de negócio no setor de infraestrutura, serviços sociais, energia e petróleo. No caso do Estado do Rio, o drama fica por conta da crise fiscal sem precedentes produzida por incentivos fiscais bilionários a grupos empresariais e financeiros, além da venda de títulos da dívida estadual a especuladores internacionais, tendo como lastro o fundo previdenciário dos servidores. 

O dilema é que, mesmo a resistência à atual devastação “temeriana”, passa por uma esquerda capaz de convocação e mobilização social. Qual a mensagem, qual o norte oferecido pela esquerda capaz de dar liga, articular as diversas lutas sociais? Enunciar o combate, sem tréguas, ao domínio do Estado pelas corporações como horizonte da luta política poderá, a um só tempo, resgatar a energia militante e politizar na sociedade a questão da corrupção, retirando-a do terreno moral. Desnecessário dizer que, sem reunir militância e mobilização em favor de projeto de efetiva mudança social, a esquerda brasileira será, fora ou no governo, responsável pela sua própria derrocada.

*Cientista político, professor da Unirio e PUC-RJ e coordenador do Instituto Mais Democracia