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Fala, silêncio!

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A síntese desse tempo é a voz. A voz de quem? De quem nunca foi escutado porque traz notícias do inferno. Não se iludam. Estamos em pleno processo eleitoral num país que nunca houve antes. Gente que nunca importou, que nunca decidiu o jogo, que nunca foi ouvida sobre o seu destino, começa a falar e vai votar. A diversidade da condição humana está mostrando sua cara dizendo em alto e bom som que “quem bate esquece, quem apanha lembra”. Se das exclusões fizermos um recorte só do feminino silenciado, ficaremos em estado de choque ao perceber como o machismo influenciou na ciência, fazendo experimentos em corpos masculinos para medicar toda uma população feminina também. Mulher tem outra pressão arterial, outra configuração, e é por isso que precisa ser consultada sob suas demandas.
Galopantes nas redes, movimentos e manifestações contra programas de governo que só pioram nossos riscos neste país provam que a mulherada não está brincando não! Estamos denunciando que o domínio machista sobre os nossos corpos é que legitima a matança, a carnificina, o festival de estupro que se normatizou no país. Qualquer plataforma que não avance na solução desta crueldade não terá o nosso voto. Não dá mais para fazer política sem mulher, sem preto, sem homossexual, sem trans, sem o toda a gente normal que o mundo tem.
“Para liberar o porte de arma será necessário que o brasileiro comprove que aguenta levar chifre”, li isso hoje e é o cerne da questão. O relato de vários assassinos do que já foi chamado crime passional e hoje é feminicídio, alegam que, se tivessem tido um minuto de reflexão, não teriam atirado. O impulso é mais um perigo da liberação do porte de arma. É melhor que ela não esteja à mão. Legítima defesa da honra era um dispositivo jurídico que até então justificava o crime do corno. Muitas morreram e morrem porque tiveram outro ou porque não querem mais aquele. Isso não é machismo? Se valesse para todos, haveria um extermínio de todo homem que tivesse mais de uma mulher então? É assim que se reflete sobre um tema: cruzando dados, mudando as posições pela empatia, se colocando no lugar daquela que trabalha o dia inteiro dando conta da criançada, da casa, da comida, da roupa, da puta que pariu que mora nas infinitas tarefas do lar e, ainda tem que transar animada de noite com o marido bêbado que precisa descarregar. É violenta a cena escrita? Hum.
Agora nossas palavras entraram no jogo. Ficamos em silêncio por muitos anos até existir nossa cidadania para romper com o sofrer calada: assédio, abuso psicológico, feminicídio são palavras atuais para nos proteger de velhos crimes. Não está fácil para o homem transitar num modelo onde ele não é o rei. Perdeu o lugar de único provedor restringindo o seu domínio, está custando a entender que não manda na saia, no cabelo de um corpo que não lhe pertence. Está perdido. É o momento de aprender a ser homem de outro modo, uma refundação de si, incluindo seu papel de pai, de amante, de companheiro com afeto e sem dominação. Não dá mais para “ajudar” na cozinha. Ajudar é favor. É essa bagunça que forma um grande chifre, acirra as paranoias e, o pior, sou obrigada a dizer não é nada disso, é só uma coisa que botaram na sua cabeça. Ser homem pode ter a ver com ser sensível, romântico, emotivo. O referencial masculino violento, o bom de briga, o esquentado, mata o próprio homem também e põe em estado de insegurança a humanidade. Obviamente nunca haverá hora boa para liberar porte de arma, mas certamente não é agora a hora de armar um homem que está com problemas de identidade. É um perigo. Vê-se no trânsito a intolerância e o ódio grassando, por causa de uma simples ultrapassagem. Imagina esse cidadão armado? Socorro! Não se governa esse país sem pensar sociologicamente no panorama de seu funcionamento, nas decisões que podem matar mais quem já morre mais.
Somos 52% do eleitorado, trabalhamos fora, criamos nossos filhos com ou sem marido, muitas de nós que não podíamos entrar nas universidades, agora já saímos dela e por nós fascistas não passarão. Não se elegerá quem não se importa com a nossa dor. Somos a base de uma sociedade e as que estão mais na base são as negras. Quando em silêncio nunca deixamos de trabalhar. Se a gente fizer greve, o mundo pode parar. Quando a gente se mexe, tudo mexe, morou? Essa também foi Angela Davis que me ensinou.