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Onde a divisão faz a força: conheça a Bélgica

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Uma das piadas mais contadas entre os belgas antes do sufoco contra o Japão, nas oitavas de final, dizia sobre a proibição do molho picante samourai naquela ocasião. Hoje, vão evitar o brazil, uma mistura de maionese, essência de abacaxi, tomate e especiarias. O creme nada tem a ver com a gente, mas é um dos acompanhamentos preferidos das famosas batatas fritas — aliás, como poucos sabem, seu segredo está na dupla fritura.

O boicote tem tudo para pegar. Em dia de grande de festa, não há nada mais belga do que comprar um “cornet de frites” antes e outro depois das bebedeiras homéricas. Na terra dos diabos, a gula está longe de ser pecado. É, na verdade, uma das poucas unanimidades de uma sociedade tão marcada pelo divisionismo. Só mesmo o berço do surrealismo poderia ser um estado-nação assentado na antítese do termo, território forçosamente definido pelas fronteiras que marcam o início da homogeneidade. França, Alemanha, Holanda e até o Mar do Norte conseguiram ser tudo o que a Bélgica não é. Talvez, só por isso, ela exista enquanto tal.

Hoje à tarde, quase todas as diferenças desfilarão diante de nossos olhos. A “ótima geração belga” é uma amostra perfeita dos 11 milhões que representam. Onze dos 23 jogadores vêm do sul e, por isso, têm o francês como língua materna. Como vêm do norte, os outros 12 falam neerlandês, como a ligeira maioria da população. Nenhum deles fala alemão. Nada grave: apenas 80 mil pessoas cultivam a terceira língua oficial do país em uma pequena faixa de terra tomada da antiga Prússia no rescaldo da Primeira Guerra.

Um país de sete ‘governos’

A questão da língua é a chave para entender a estrutura do estado belga. Desde a independência, em 1830, foi o que inspirou os movimentos separatistas e a disputa de territórios que, em poucas palavras, é a história da afirmação flamenga sobre a aristocracia francófona. O equilíbrio de forças, atingido apenas em 1970 foi ampliado por seis reformas que levaram à criação de sete estruturas independentes de poder: o governo federal, com rei, primeiro ministro e congresso bicameral; as chamadas três comunidades linguísticas; e três regiões administrativas, Bruxelas-capital, Flandres e Valônia. A burocracia soviética fica pequena diante do caso belga.

A consequência é um enorme abismo cultural. Educação, televisão, jornais, música, tudo é completamente diferente. Prova cabal é a quantidade de estudantes belgas que escolhem o próprio país como destino no programa de intercâmbio da União Europeia. De fato, para um valão, ir à Flandres é como viajar para fora, mesmo que o bilhete de trem para qualquer cidade custe apenas € 7,50 e o deslocamento de um extremo ao outro do país dure apenas três horas.

Tradicionalmente, para dirimir tensões, os treinadores dos diables fazem malabarismos para equilibrar a lista de convocados com representantes de cada região. Desta vez, porém, parece não haver tensões. Para começar, os jogadores só falam inglês entre si. Contrariando o ditado segundo o qual um belga nasce, vive e morre sob a sombra do campanário de sua cidade natal, 21 deles atuam fora do país, 11 dos quais na Premier League da Inglaterra.

Além disso, os tempos são de calmaria na disputa étnica tradicional. Na revista semanal “Le Vif”, o jornalista flamengo Jef Van Baelen escreveu, em bom francês, que essa seleção parece um lar onde os pais são separados, mas continuam a viver juntos. “É como se as crianças que crescem nessa triste casa dividia tivessem decidido se comportar como uma verdadeira família, apesar de tudo”, anotou com certo ufanismo unionista.

A verdade é que, para os extremistas, o inimigo é outro há algum tempo. O homem gol Romelu Lukaku e outros nove companheiros não fazem o tipão do gaulês originário, como o meia Kevin De Bruyne. Mas, ao contrário do que acontece em outros países, não precisaram se nacionalizar para jogar a Copa do Mundo. São filhos e netos da imigração, jovens que escaparam aos cercos periódicos da extrema-direita e puderam nascer como belgas. Somados aos estrangeiros, hoje mais de 20% da população, esse grupo mudou para sempre a cara do país.

É verdade que há pouquíssima miscigenação na Bélgica. Quando caminhei pela primeira vez nos corredores da universidade, a separação quase total entre os grupos de ascendência africana, árabe e europeia, por assim dizer, foi de longe o que mais chamou atenção. Quem andou lendo as recentes declarações de Lukaku, não se espanta. Ele, o experiente zagueiro Vincent Kompany e mais quatro selecionados são, talvez, a única alegria deixada pelos quase cem anos de perversão colonial no Congo, em Ruanda e Burundi.

O fenômeno da imigração, no entanto, não se encerra no enclave congolês do Matongé, no centro de Bruxelas. Espalhado pelo país, também está na comuna islâmica de Molembeek ou nos bairros italianos e turcos da Valônia. Só na seleção, ainda há contribuições de Marrocos, Martinica, Kosovo e Espanha. As raízes desse processo são profundas e quase sempre silenciadas. Sistematicamente induzidas pelo estado em períodos de crescimento econômico, todas as ondas de imigração foram reprimidas em questão de poucos anos sob os velhos argumentos do “roubo de empregos” e “inchaço da máquina social”.

Craques filhos de imigrantes

A primeira experiência foi ainda no pós Primeira Guerra, quando o país se recompunha e os belgas já não aceitavam a insalubridade das minas de carvão, a principal riqueza de então. Por uma década, a Federação das Mineradoras importou operários franceses, italianos e poloneses, mas o processo foi bruscamente interrompido pela crise inaugurada com o Crash de 29.

O fechamento das fronteiras e a expulsão de trabalhadores durariam até a próxima reconstrução, saldo da Segunda Guerra. Então, os governos de Bélgica e Itália assinaram um acordo que previa a troca 50 mil operários por cargas de carvão. Os italianos chegaram no país como commodity até que, em 1956, um grande acidente matou 262 trabalhadores e estremeceu de vez a diáspora. Em substituição, vieram espanhóis, gregos e marroquinos. Até que, no meio da década de 1960, chegaram os turcos, último grande contingente dos anos de ouro da mineração. Ao contrário do que se vira no início do século, os imigrantes de então podiam levar suas famílias: com o envelhecimento da população, o estado passou a ver com bons olhos a chegada de mulheres e crianças.

Mas, como um refrão que se repete, nos anos 1970, a crise da mineração e a diminuição da atividade econômica levou a Bélgica novamente a se fechar. Era tarde. A legislação já tinha uma série de gatilhos que protegiam os estrangeiros, como o direito ao “reagrupamento familiar”, Além disso, nas duas décadas seguintes, regularizações pontuais deram cidadania aos imigrantes ilegais e à segunda e terceira geração. Os filhos de casais mistos ganharam a nacionalidade em 1984 e, seis anos depois, foi a vez dos netos de imigrantes. Dessas leis saíram praticamente a metade dos atuais diabos vermelhos. Paradoxalmente, os únicos capazes de unir as pontas de um espectro político que recrudesceu justamente em torno de sua existência. Passem ou não do Brasil, os “ótimos” terão seu nome na história.

*Gabriel Vasconcelos é repórter de economia do JB e morou na Bélgica de 2016 a 2018