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'Fragmentos do discurso da ilusão', destaca crítica sobre Todo clichê do amor

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Duas peças (“Love, love, love”; “Inverno da luz vermelha”), duas das mais potentes atrizes do país (Débora Falabella e Marjorie Estiano), um ator-diretor interessado na colisão como força motriz das relações sinceras (Rafael Primot). No teatro brasileiro, num intervalo de seis anos, esses dois espetáculos marcaram os palcos, numa encenação do esgarçamento do querer sob o impacto da intolerância e do desdém.

Revelado como cineasta no coxo “Gata velha ainda mia” (2013), Primot fez (e brilhou n)essas duas montagens. Fez “Love” com Débora e tremeu sob o frio invernal de Adam Rapp ao lado de Marjorie. Parte das trocas sensíveis dessas duas travessias cênicas se materializam nas cenas de “Todo clichê do amor”, um filme de amadurecimento, imperfeito, mas vivo e quente, que ele dirige com instinto de descoberta. 

Hábil na construção de planos longos, ele gera na tela (com resultados desiguais, mas com uma provocação prazerosa de ver) um ensaio sobre as artimanhas da vida a dois, que lembra “Fragmentos de um discurso amoroso”,  de Roland Barthes (1915-1980). No livro, amar é uma espécie de imperativo categórico, que justifica tudo, mas não se explica por nada – daí poder virar filosofia. Temos, em cena, diferentes núcleos de personagens que, aos poucos, vão se mostrando como um só eixo dramático, num jogo de armar, onde um segmento entra no outro. 

Marjorie entra como um holofote no seu núcleo: é a dominatrix que aplica técnicas de sadomasô no cliente errado (Eucir de Souza). Débora abre seu sorriso homicida como uma supernova: a estrela que encandece o céu de um entregador (o próprio Primot, em divertida atuação). Atrizes com a estrada de glórias nos palcos e nos cinemas como Maria Luiza Mendonça, Gilda Nomacce e (a sempre surpreendente) Clarissa Kiste entram também nessa gincana narrativa atrás de algum sentido racional no perigoso ato de abrir o peito ao próximo. Cada situação encenada (num agridoce balanço de riso e choro) é um jogo, de sensações, de interpretações, de perdas e ganhos emotivos. 

E no jogo do entendimento filosófico do desejo, foi Barthes quem levantou a bola da inquietude... a bola que quica ao longo dos 83 minutos de “Todo clichê do amor”: “De que serviria dar nome ao que encerra somente o equívoco?”. Equívoco é a chave aqui, pois é do erro que se fala neste jogral narrativo de metalinguagens, mais potente como experimento do que como produto acabado, que trança situações, algumas vividas pelos personagens, outras narradas por eles, confundindo conscientemente o que é vivido com o que é narrado. O filme é uma fricção entra concretude e imaginação.

* Rodrigo Fonseca é roteirista e presidente da Associação de Críticos de Cinema do Rio de Janeiro (ACCRJ)