ASSINE
search button

Brasas de 1968 em corte argentino

Compartilhar

Veias abertas da América Latina hão de sangrar na Croisette, durante o 71º Festival de Cannes (8 a 19 de maio), em uma retrospectiva da agitação política de 1968, que o evento francês promete fazer de carona no resgate de um dos filmes mais piqueteiros já realizados feitos neste continente: “A hora dos fornos”, do argentino Fernando E. Solanas.

Alvo de boicotes e protestos à época de sua produção, 100% clandestina, esse aclamado documentário traduziu em imagens as feridas morais do imperialismo na carne dos povos latinos (com destaque para a absoluta invisibilidade dos ameríndios aos olhos do capitalismo). Na comemoração de seus 50 anos, ele terá projeção de gala no Palais des Festivals, onde será a atração mais incendiária da seção Cannes Classics de 2018.

Paralela à disputa pela Palma de Ouro, a ser iniciada com a projeção de “Todos lo saben”, do iraniano Asghar Farhadi, a mostra de clássicos se dedica a revisitar filmes que fizeram história por seu vigor estético ou por sua militância em anos de crise. Em 1968, Cannes cancelou sua programação no primeiro dia do evento, antes da première de “Frapê de menta”, do espanhol  Carlos Saura, por protestos de um grupo de cineastas (Jean-Luc Godard, entre eles) contra a arbitrária demissão do diretor da Cinemateca Francesa.

Solanas, então um jovem cineasta, fez a estreia de seu doc noutro lugar da Europa: na Alemanha, no Mannheim-Heidelberg International Filmfestival. Saiu de lá com um prêmio especial, que assegurou a excursão de suas ideias pelo mundo todo, denunciando as ditaduras das Américas. “Esse documentário foi feito com fúria, porque é fruto de uma época em que 1.500 argentinos perderam a sua liberdade política por decisões de um governo golpista. O combustível da nossa arte naquele tempo era a indignação e o desejo de justiça, não o interesse em ganhar o Oscar ou vender milhões de ingressos”, disse Solanas ao “Jornal do Brasil” no Festival de Berlim, em fevereiro, onde exibiu o documentário inédito: “Viaje a los pueblos fumigados”, sobre as consequências da exploração econômica no cotidiano dos indígenas da Argentina.

“Em 1968, havia vigília por todo lado. O cara que batia no teu ombro dizendo ‘Filmaço, garoto!’, era o alcaguete que te dedava para as Forças Armadas. Por isso, para fazer cinema, a gente viajava uma hora de estrada de chão até chegar a um lugar clandestino qualquer, invisível aos olhos da Justiça, onde ‘A hora dos fornos’ pudesse ser exibido e debatido por um punhado de pessoas. Mas o boca a boca formado nessas sessões veladas corria o país”.

Exclusão audiovisual

Em 1988, Solanas saiu de Cannes com o prêmio de Melhor Direção por “Sul”. Voltou lá em 1992 com “A viagem” e levou o de Contribuição Artística, pela engenharia visual sofisticada de sua narrativa. Hoje, anda mais envolvido com política do que com a indústria do cinema (“Só filmo para flagrar o que as grandes corporações de mídia fingem não ver”, diz), tendo se candidatado à Presidência da Argentina e a diferentes cargos de governo.

Como segue rodando documentários de baixíssimo orçamento, o realizador flagra outro tipo de patrulhamento no audiovisual da América do Sul neste momento. “Em 1968, a censura era o cassetete da polícia. Hoje, a censura é o cancelamento de um patrocínio”, diz o cineasta, com a sabedoria de seus 82  anos de vida e 56 de cinema.

“Atualmente, um jovem cineasta argentino pode fazer a denúncia mais violenta que quiser, sem correr o risco de ser preso por isso. Pode bater no presidente à vontade, criticar a economia, exigir a reforma agrária. Nada disso vai fazê-lo ser preso. Mas quem fala o quer, ouve o “não” de quem controla o dinheiro. Esse jovem reclamão vai enfrentar a dificuldade de levantar verba para filmar. E, se você não compactua com as grandes companhias de cinema, hoje atadas à Hollywood, não vai levantar seu projeto do zero. Ou não terá como exibi-lo. Eu vejo gente do porte de Lucrecia Martel, uma das maiores diretoras da Argentina, tendo problemas para ter seus filmes exibidos no nosso país. É a nova realidade da exclusão audiovisual”.

Misturando imagens de arquivo, fotografias (como um close de Che Guevara), poemas e filmagens explosivas da repressão policial contra passeatas em todo o território da América do Sul, “La hora de los hornos” (título original) é um dos pilares do cinema novo argentino, tendo usado uma linguagem gráfica sofisticada até para os padrões do cinema digital do presente. “Não vejo fronteiras entre o documentário e a ficção, no que diz respeito ao registro e à crítica ao real, mas vejo uma cisão econômica clara entre essas formas de olhar. A linguagem documental é a alternativa dos excluídos ou daqueles que, como eu, não têm a bênção de contar mais com um produtor talentoso do seu lado para correr atrás de meios para filmar. Por isso, desde os anos 2000, passei a sair pela Argentina com uma equipe minúscula - por vezes, limitada a um motorista, um operador de som e eu - para ver o que se passa no coração do nosso país”, diz Solanas, premiado no Festival de Veneza de 2005 com “La dignidade de los nadies”, sobre os panelaços em seu país. “Há anos a América Latina tem dono: os bancos. 

São eles que regem nosso destino. Lá em ‘A hora dos fornos’, a gente não conseguiu ver isso, pois o inimigo tinha farda. Hoje, o inimigo endossa cheques”. Além de rever “A hora dos fornos” no canteiro dos clássicos de Cannes, Solanas aproveitará a sua passagem pela Croisette para divulgar “Viaje a los pueblos fumigados”. Ao fim de sua aplaudida projeção de gala na Berlinale, a crítica europeia foi unânime ao elogiar a força plástica da montagem do filme, considerando o melhor trabalho do diretor nas últimas duas décadas.

“Só existe um modo de combater a exploração capitalista: produzir e disseminar imagens do real, pois, só assim, pelo registro e pela denúncia, a barbárie econômica pode ser exposta a olhos preocupados com o bem-estar da sociedade. O Iraque, por exemplo, entrou para a história como sendo uma terra bárbara, porque não teve o direito de se expressar a partir de imagens próprias. O Iraque que conhecemos é o Iraque visto pela lógica de intervencionismo dos Estados Unidos e não pela lógica de seu povo. Um povo precisa ter o direito de ser o senhor de sua própria memória”, diz Solanas.

“Eu quase não vou ao cinema. Se você me perguntar de um bom filme argentino que está fazendo sucesso no mundo, provavelmente, não vou conhecê-lo. Mas não deixo de filmar. Filmo por precisar de provas do que se passa no real. Graças ao nosso empenho, lá atrás, em ‘A hora dos fornos’, o 68 argentino existe”. 

Filmes míticos 

Ainda em sua revisita a 1968, a mostra Cannes Classics vai homenagear um dos filmes de maior impacto estético daquele ano: “2001 – Uma odisseia no espaço”, de Stanley Kubrick (1928-1999). O longa-metragem será exibido em cópia remasterizada, sob a supervisão de um fã ilustre, o cineasta inglês Christopher Nolan (de “Dunkirk”), que vai ministrar uma masterclass sobre a narrativa kubrickiana. 

O menu da Cannes Classics promete ainda matar saudades de filmes míticos, como “Ladrões de bicicleta” (1948), “Vertigo – Um corpo que cai” (1958) "Grease - Nos tempos da brilhantina" (1978) e “Imensidão azul” (1988). Outro destaque do festival será a comemoração do centenário de Ingmar Bergman (1918-2007). Uma cópia restaurada de “O sétimo selo” (1957) será exibida, além de um documentário inédito sobre os bastidores de sua obra dirigido pela alemã Margarette von Trotta: “Searching for Ingmar Bergman”. Há ainda outro doc sobre ele no pacote da Croisette: é o longa sueco “Bergman – A year in a life”, de Jane Magnusson. 

Cannes vai dar um lugar de honra para o Brasil com uma homenagem a Carlos Diegues a partir da exibição de seu esperado “O Grande Circo Místico”. Há coproduções nacionais ainda nas mostra Un Certain Regard (“Chuva e cantoria na Aldeia dos Mortos”, de Renée Nader Messora e João Salaviza) e na Quinzena dos Realizadores (“Los silencios”, de Beatriz Seigner). 

* Rodrigo Fonseca é roteirista e presidente da Associação de Críticos de Cinema do Rio de Janeiro