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Poesias positivas: antologia “Tente entender o que tento dizer” reúne poetas para abordar HIV

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Como a literatura ajuda a entender o impacto de quem se descobre soropositivo? Os significados de se relacionar com pessoas que vivem com o vírus podem ser traduzidos em versos? A abordagem do tema do HIV/Aids nas artes é uma estratégia política? Pode a poesia se contrapor à infecção? Como? É possível uma literatura do HIV/Aids? 

A coletânea de poesias “Tente entender o que tento dizer: poesia + hiv/aids”, que a Bazar do Tempo publicou em maio, suscita questões como essas. O livro traz 96 poemas que abordam o tema direta ou indiretamente, sob organização do poeta e jornalista Ramon Nunes Mello. 

Além de fazer uma antologia da produção brasileira em verso sobre o tema, a obra também apresenta criações inéditas, feitas a convite do organizador por autores de diferentes gerações, gêneros, raças e sorologias. Dentre os poetas mais conhecidos da obra estão Angélica Freitas, Antônio Carlos Secchin, Chacal, Silviano Santiago, Victor Heringer e Viviane Mosé.

A motivação da obra remete a 2012, quando Ramon, aos 28 anos, recebeu o diagnóstico: reagente, HIV positivo. Sua primeira reação, ele diz, foi de desespero: iria morrer? Não mais namoraria nem faria sexo? Como seria a vida dali para frente? “Tive de enfrentar meus medos e rever a forma de enxergar o mundo. Não foi fácil. Procurei amigos, familiares e conhecidos para me entender perante a vida”, conta. 

Em 2015, o poeta discutiu publicamente o assunto, no texto “O sentido de urgência: a necessidade de se conversar sobre o HIV”, publicado na “Carta Capital”. O artigo contava como, vencido o pavor inicial, a infecção o levou a mudanças na relação com corpo, mente e espiritualidade, por meio, por exemplo, da prática do ioga, da meditação e do uso da ayahuasca. 

Falava ainda sobre como o HIV não mais significava uma sentença de morte desde o coquetel antirretroviral. E justificava a razão do próprio texto: "É preciso acabar com o tabu, romper com a representação de que o HIV é igual à morte (...) compartilho publicamente o meu diagnóstico porque hoje tenho consciência de que a visibilidade pode modificar minha realidade e colaborar com aqueles que passam pela mesma experiência". 

A antologia é mais um encadeamento dessa mesma cadeia. O poeta afirma que, ao pegar o diagnóstico, buscou referências na literatura. Embora encontrasse textos mais antigos – incluindo cartas públicas de Caio Fernando Abreu, de onde veio o título do livro –, não achava produção substancial na poesia brasileira contemporânea. Isso o levou a postar no Facebook, convocando conhecidos a escrever. Mais convites se seguiram. Não houve seleção por fatores como sorologia porque, segundo Ramon a epidemia “diz respeito a todos. Todos estão sujeitos a conviver com ela, direta ou indiretamente”. 

A intenção principal da obra, diz Ramon, não é política, mas estética. O poeta diz não desejar apresentar “reivindicações”, mas testar como o tema pode ser tratado na poesia. “Se a arte poética tem uma contribuição que a diferencia de outras formas de expressão, esta é mostrar dimensões subjetivas e diversas do tema. Isso permite expandir as maneiras como falamos sobre o HIV, indo além dos dados médicos e estatísticos e transformando os seus significados”, diz.

Uma das ideias a orientar a coletânea é a de que “o verdadeiro vírus é a linguagem”. A noção foi formulada pelo escritor norte-americano William S. Burroughs, que desenvolve a premissa de que a humanidade está infectada pela linguagem, um meio ao mesmo tempo de comunicação e de controle. Ramon afirma que “se a linguagem é um vírus, conseguimos afetar o outro conversando sobre a questão ou escrevendo”. Esta convicção, ele diz, o levou a grafar “hiv” e “aids”, em minúsculas, no livro. “Não quero dar protagonismo ao vírus, nem ao medo. A vida é muito mais importante”.

Linguagem, memória, corpo 

O livro divide-se em três partes: linguagem, memória e corpo. Na primeira, diz o organizador, estão os poemas mais subjetivos, que mais se aventuram na investigação de até onde um discurso poético consegue ir ao falar sobre HIV/Aids. 

Na segunda, a lembrança da geração que passou pelo período entre o início da epidemia, em 1982, e a introdução da terapia antirretroviral, em 1996, se faz fortemente presente. Na época, a expectativa de vida de quem era diagnosticado soropositivo era de um ano. O tema da memória, observa Ramon, aparece “principalmente entre os poetas mais velhos, que perderam muitas pessoas”. 

Na parte sobre o corpo, alguns poemas se referem à vida permeada por remédios. Nas palavras de Ramon, a vida de quem é soropositivo “tem uma relação com os remédios e com o tempo controlado pela medicação. Há também efeitos colaterais até o fim da vida”. O tema da sexualidade também aparece muito. “Como se trata de um vírus que enfraquece a imunidade das pessoas, que ataca diretamente o corpo, essa questão é muito latente”, diz Ramon. 

Para o poeta, esta relação com a sexualidade é uma das explicações sobre por que o HIV/Aids ainda é tabu e continua a se propagar. Segundo as Nações Unidas, 830 mil pessoas no Brasil têm a sorologia positiva; dessas, 112 mil não o sabem. “As infecções ainda ocorrem devido ao desmonte das políticas de HIV e ao avanço do conservadorismo. Nós, enquanto sociedade, não levamos a informação às pessoas. Antes de meu diagnóstico, o tema não era conversado entre meus amigos ou pares. Quando você vai transar com alguém, ninguém pergunta se você fez o teste”, diz Ramon. 

Em debate na Livraria Leonardo da Vinci sobre o livro na semana passada, o escritor e ensaísta Silviano Santiago afirmou que os poemas do livro abordam “sempre o amor e a morte”. Ele ressaltou que o que o “fascina na Aids é que somos todos iminentes. Estamos todos programados para amar e para a morte”. O professor de Comunicação da UFRJ Denilson Lopes, por sua vez, afirmou que o livro constrói uma história do HIV distante dos grandes fatos. Para Denilson, há na obra uma história feita a partir do corpo, “que tem e carrega marcas do passado”. 

Ramon destaca que “a questão do HIV é muito complexa e diversa. Tentamos trazer uma diversidade de vozes. Em momento algum o livro pretende esgotar o assunto.  Em meio ao trabalho da poesia, há preconceito, estigma e morte, sobretudo de populações mais vulneráveis. Quero fazer uma radiografia de como gerações de poetas antigos e novos enxergam a questão. Isso não significa que ela esteja resolvida”.