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O golpe revisitado

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O governo dos Estados Unidos não economizou vivas ao golpe militar que atingiu o Brasil, em 1964, nem mesmo negou apoio naval estratégico, em nossas águas territoriais, ao esquema montado para derrubar o presidente João Goulart. É farta a documentação americana que confirma a interferência prestigiosa no episódio, ao contrário dos comandos brasileiros, que afirmam terem sido destruídos os papéis relacionados com a ditadura, que acabou durando duas décadas, não obstante seu primeiro presidente, Castello Branco, ter garantido que ela seria apenas um “ato missionário e cirúrgico”.

A destruição dos comprobatórios, se é que de fato assim se procedeu, seria, por si só, mais que suficiente para confirmar a suspeição de graves ocorrências, entre as quais terríveis atrocidades. Mas, como dizem os incendiários, faz-se como nas cartas de amor e ódio: ao fogo tudo que compromete o passado.

Agora, tomando-se por base a divulgação de relato confiado ao principal órgão americano de segurança, atribui-se, como escândalo, o fato de dois ex-presidentes, ambos falecidos, terem autorizado a pena de morte para adversários tidos como subversivos e perigosos. Estranha a estranheza – sem remissão para a redundância – sobre o conhecimento prévio ou posterior daqueles presidentes no processo de eliminação sumária. Por que nada saberiam? O que teriam a dizer, vivos fossem?

Basta considerar que a eliminação de mais de uma centena de presos, em unidades de segurança pública, praticada por escalões inferiores, não teria como se realizar sem conhecimento do Palácio do Planalto. Se os dois, afirma o documento comprometedor, pediram o tempo de um fim de semana para pensar e decidir, certamente acabaram removendo dúvidas e avalizaram a eliminação de presos; moços, quase todos, cujas biografias acabariam por levá-los ao fuzilamento ou à forca.

Independentemente da responsabilidade direta que se possa comprovar em relação ao presbiteriano sisudo Ernesto Geisel e a Figueiredo, o amante de cavalos, que, a galopes curtos, conduziu a reabertura política, não haveria como isentá-los de dolorosa omissão. Faz bem, portanto, o Ministério das Relações Exteriores reivindicar de Washington a entrega de documentos esclarecedores sobre esse mal cometido pelo golpe no Brasil, que os Estados Unidos apoiaram com entusiasmo.

Certo é que os dois generais não podiam aceitar facilmente os informes que lhes chegavam sobre presos ditos “comprovadamente perigosos”. Também não tinham direito de ignorar os procedimentos de certos policiais e militares de deformação mental, nas sessões que produziam “confissões” de crimes não cometidos, que nada mais eram que sonhos alimentados por diferenças ideológicas e proselitismo político. Vítimas de torturas físicas e psicológicas, ameaças a familiares distantes e amigos ausentes, para confessar ideias e pensamentos. Ou crimes que inexistiram.

Em sua maioria, nada mais que jovens com sonhos distributivistas para o seu mundo de desigualdades profundas, embora muitos que sobreviveram aos porões, reneguem, hoje, um idealismo exacerbado, meio século passado. 

Ora, se de tudo isso sabiam o Brasil, os partidos de oposição e as entidades internacionais de defesa de direitos humanos, como os generais poderiam admitir o que andavam fazendo seus subalternos, sujeitos a hierarquia rigorosa, que não admite ignorar escalões superiores, mas deles aceitar tudo? E, se os generais não autorizaram, pelo menos optaram por fazer vista grossa, para contemporizar com o crime. Cabe desvendar.

Considerado o fato novo, reabre-se a temporada de desnudamento daquela ditadura, mais que cinquentenária. A História, principalmente ela, reclama que tudo se esclareça, sem maiores preocupações dos militares com segredos que agora possam vir à tona. Porque não são suas instituições que entram na berlinda, mas os maus agentes, os que exorbitaram na sede de sangue. Essas instituições não foram algozes, embora cenário da violência.

Outra preocupação, numa derivação da desejada publicação dos fatos há tanto ocorridos, é que a procura de antigas verdades não venha a contribuir para radicalização da próxima campanha eleitoral, entre esquerda e direita. O que deve preocupar a nação é apenas a escolha de novos gestores, que sejam capazes de honrar a memória de tantas vítimas que, ainda que optando por vias nem sempre adequadas, sonhavam com um Brasil melhor.