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Kim, sobe uma estrela

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Quando se trata de política externa e relações entre os governos, não são poucos os especialistas nesse campo a assegurar: apenas uma coisa é realmente impossível, o impossível. Os fatos gerados por interesses permanentes ou momentâneos misturam-se e se alteram de tal forma que tudo pode acontecer. É esclarecedor que nessa área os líderes até podem ter todas as respostas, mas vêm os fatos e mudam as perguntas. É o que faz lembrar Cingapura, sede do que não se esperava que acontecesse.   

Ainda assim não será arriscado demais dizer que, depois desta terça-feira, o mundo não será o mesmo, se for tomado em conta que ele acaba de inscrever, no mapa de grandes decisões, um ditador que dá sinais de imprevisibilidade nas atitudes e dono da mais fechada entre as ditaduras contemporâneas. Kim Jong-un é o herdeiro da hierarquia familiar que governa a Coreia do Norte, país até há pouco desconsiderado no concerto das nações. Desembarcaram em Cingapura dois estranhos, cuja única identidade talvez sejam os cabelos desajeitados. 

As democracias ocidentais, sob a jamais negada influência americana, passam a conviver ou tolerar, mesmo que em diferentes níveis, com um regime despótico que nada tem a ver com elas. Porém, bastou pouco tempo para Kim surgir e dominar a cena, bem sucedido na provocação que fez a Trump, que acabou sendo o patrono de sua chegada à mesa de um diálogo custoso, do qual a comunidade internacional não tem muito o que esperar, pelo menos de imediato.

Contudo, o líder norte-coreano parece não se preocupar com conceitos e preconceitos em torno de sua imagem. Uma rara exceção foi o convite a jornalistas para assistirem à destruição de centros de produção de artefatos atômicos. O estranho ditador, que em 2014 determinava aos universitários adotar seu pitoresco corte de cabelo, agora abençoado com o gesto da Casa Branca, adquiriu status de potência; estranhamente proporcionado por seu maior inimigo. Para completar a encenação dos petardos, só falta o governo dos Estados Unidos acreditar que naquela ato de desarmamento e aparente boa vontade tudo virou pó, e, portanto, que os coreanos do norte, hoje, estão totalmente desarmados.

O encontro de Cingapura, simbolizando disposição dialogal entre dois países, sugere desdobramentos. Outros governos, mesmo que não diretamente empenhados, devem considerar que na comunidade internacional estão solenemente integrados um pais e um ditador que a Organização das Nações Unidas tem obrigação de respeitar, mesmo sem admiti-los formalmente. De fato, o líder norte-coreano passa a ter bagagem para ser considerado, pelo menos por duas razões: porque foi à mesa a convite do governante do país mais poderoso do mundo; e porque se apresenta como um pacifista que destrói armas atômicas, anseio universal. 

Por mais, a pressa com que se elaborou a montagem dessa reunião resultou em outra constatação que não pode ser ignorada. Trump leva seu país e aliados a admitirem, niveladas, duas Coreias, bem divididas. Não mais apenas uma, a de Seul, mas a outra Coreia, a de Pyongyang, que até agora era tratada como a patinha feia da Ásia. Não mais um apêndice de segunda classe.

Ao se traçar a responsabilidade do presidente Trump nesse episódio, que ele preferiu assumir sem a preocupação de promover maiores consultas e dividi-la com outras capitais, os que o conhecem afirmam que os resultados finais na diplomacia não dominam a primeira linha de suas preocupações, pois, no íntimo, ele cuida é de um projeto de fama e prestígio pessoais. Para isso também estaria concorrendo essa recente aventura de despertar um urso coreano perigoso, mas distante; pobre, mas gasta tudo que tem para se armar; amigo dos inimigos da Casa Branca; sem qualquer compromisso nas relações ocidentais.

Se, por fim, as conversas em Cingapura derem em nada, fracassarem ou caírem na tepidez, Trump lançará mão da velha cartilha que adotou: a culpa é da mídia, que ele sempre elegeu como inimiga número um de tudo e de todos.