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Uma reforma adormecida

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Lidar com a terra, para que ela se transforme em verdadeiro instrumento de riquezas econômicas e desenvolvimento social, é uma arte com a qual há muito que aprender, sem embargo do desconcertante contraste que enseja num país contemplado, pela mão da natureza, com espaços incalculáveis. Se a conclusão é que não é bem explorada e pessimamente dividida, a tendência imediata é atirar as culpas sobre os governos, nunca suficientemente sensíveis para dar trato ao problema. A não ser em algumas iniciativas isoladas no campo da reforma agrária, esta igualmente amarrada nas teias da burocracia, que atrasa e desanima.

Mas é de justiça reconhecer que, se o governo pouco ou nada faz, é porque uma política para o campo nunca foi objeto de real preocupação da sociedade, que só se mobiliza quando ocorrem ocupações ilegais, solução sempre inadequada, como tudo que opta pelo caminho da violência. Tome-se por base o programa dos partidos políticos, que se comprazem com ligeiras referências sobre a terra. No Congresso Nacional, o tema, quando aflora, chega esculpido em visões distorcidas, pouco racionais, sem produtividade.

Deformação que também contribui foram os sucessivos equívocos na definição dos enormes espaços improdutivos, o que não pôde evitar flagrantes injustiças, ao lado de ações criminosas, como a destruição de patrimônios rurais.

Permanece outro defeito – este entre os mais prejudiciais – ao se tratar a reforma agrária como simples resultado de oferta gratuita de terra, ficando os compromissos da contrapartida a ser garantida pelos ocupantes apenas como detalhe de intenções jamais cumpridas. Tolerância ainda maior mostram os muitos casos em que os contemplados vendem os terrenos que haviam recebido, gratuitamente, para cultivar, sem que sejam incomodados pelo governo nessas transações lucrativas e imorais.

Frente ao complexo desafio, essa reforma acaba ficando, como está agora, no meio do caminho, sem evoluir e sem ter como regressar àquele antigo entendimento de que a terra é propriedade intocável. Para desamarrar tal impressão, talvez fosse oportuno, como primeiro passo, aferir os descaminhos do velho Estatuto da Terra, e com ele definir o que seja do real interesse social. Esse estatuto emperrou em fevereiro de 1965, depois da desapropriação, em nome do social, do complexo da usina de Caxangá, em Pernambuco. Logo após, o regime estatutário e a pretendida distribuição entram em rota de colisão.

O assunto resvalou para terceira categoria, raramente despertado nos debates e na pauta das cobranças ao governo. Mesmo a igreja, que nos tempos das pastorais de base reclamava destinação mais que social, mas verdadeiramente humanitária, em benefício dos pobres sem terra, arquivou sua pregação e dela já não cuida. Os agentes pastorais, que silenciaram, gostavam de lembrar que a propriedade da terra é direito derivado, subordinado, portanto, a um destino universal. 

Temos hábito de armazenar projetos mais ambiciosos, sempre sujeitos a obstáculos, antigos no rol de uma certa capacidade nacional de adiar soluções. Bem antiga. Velhos alunos do Científico do Colégio Pedro II, neste Rio, poderiam lembrar as lições de interiorização do jesuíta João Daniel (1722-1776), primeiro a se preocupar com a reforma, preconizando divisão da Amazônia em glebas, para se plantar de tudo e criar gado. Nesse passo, também constrange lembrar que o brasileiro Coutinho Cavalcanti foi, em 1959, o autor do projeto agrário pioneiro em Cuba, depois adotado pela Venezuela. 

O assunto está morto, sem sinais de que possa ressuscitar em futuro próximo.