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Entrevista - Elisa Lucinda: ‘Ser pobre não é defeito’

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Demóstenes foi o orador dos oradores na Grécia antiga. Correndo contra a direção dos ventos, ele treinou sua oratória e, assim, curou a gagueira que o impedia de discursar como Calístrato, cujos aplausos ambicionava. Demóstenes, porém, não usou a fala em vão. Ele defendeu as causas de sua Atenas, ameaçada de invasão por Filipe da Macedônia. Assim, escreveu a série de discursos conhecida como as “Filípicas”, conclamando o povo de Atenas contra o perigo que a Macedônia lhes representava. Elisa Lucinda é tipo a nossa Demóstenes. Só que nunca foi gaga, que eu saiba. Sempre comprometida com uma causa importante, ela não usa sua palavra em vão. Eu a conheci no palco, em texto seu, defendendo a boa qualidade dos cabelos crespos dos negros. E ensinava que o seu era um cabelo solidário, que adquiria a forma do lugar em que se encostava-se era na parede, ficava chato, se entrava dentro de um cubo, ficava quadrado. E que ela podia mergulhar no mar, sacudir a cabeça, e o cabelo secava. E lá seguia, enaltecendo a cabeleira, que “é boa, não é cabelo ruim, como tantos difamam”. Com ironia e fino humor, criticava o olhar racista sobre a característica de uma raça. Da raça ao homossexualismo, às lutas sociais, onde houver reivindicação justa, lá está Lucinda metendo o nariz, o cabelo, a palavra, com suas “Elísicas”, que ela faz chegar, com graça, aos ouvidos mais distintos. Elisa fala para todos, ricos e pobres, ignorantes e esclarecidos. Escritora, poetisa e atriz, sua capacidade artística e intelectual não se limita. Vamos escutá-la, nesta conversa com o repórter desta coluna, JOÃO FRANCISCO WERNECK. 

O que é ser negro no Brasil? 

Há um impacto inevitável, em um país de estrutura racista, em qualquer negro, seja mulher ou homem, na sua constituição como cidadão. Você se depara ainda muito jovem com isso. Quando se entra na adolescência é um susto: o menino negro é ladrão, não pode correr que fica sob o risco de ser tachado como ladrão; e a menina negra é puta. Então, era um outro olhar aquele que eu recebia. É muito difícil se impor em uma sociedade que te desmotiva, te desvaloriza pelo seu fenótipo. Isso é uma porrada. Quando eu cheguei no Rio de Janeiro foi um susto. Eu andava pela cidade de shortinho, e de mão dada com meu filho, recebia abordagens do tipo: “Quanto é?”. E é só pelo afeto é que o Brasil pode conversar sobre esse assunto. Todas nós negras sofremos alguma abordagem de assédio pela estrutura de escravidão que existe no Brasil. A constituição de uma mulher cidadã demora muito e, se for negra, demora dobrado. Você precisa provar que não é a empregada, não é a puta, você precisa mostrar que presta…

Na escalação de papéis cênicos, como é enfrentar os estereótipos subalternos? 

Como o racismo é espiral, ele é uma grande rede incrustada, subliminarmente, em várias mentes que decidem os elencos, roteiros, direções. Então, o cara que escreve, às vezes, sequer põe nome nesse serviçal. Apenas escreve: serviçal, negro. Um personagem banqueiro, médico, esses sempre é que vêm com um nome. O serviçal não tem nome, e então, de repente, o ator também não precisa ter nome, é quase um figurante. Eu tive sorte. Quem me colocou no palco foi a minha poesia. Eu estava na praia de Ipanema, em 1987, e tinha um Varal de Poesia, o Bial participava. Então eu fui me apresentar lá. E aí uma amiga, a Glória Horta, gostou e me chamou para uma canja no Bar Manga Rosa, em Botafogo. E aí começaram a me chamar. Isso é importante porque, quando eu apareci para o teatro, eu não era apenas uma atriz bonita, era a poetisa. O meu primeiro papel eu fiz uma dançarina, a Sueli. Depois, fiz uma escrava que brigava com a patroa. Eu sempre fiz grandes personagens, médicas, saxofonistas. Recentemente, em um filme estrelado pelo Mateus Solano, eu fiz uma publicitária poderosa com dois escritórios. Curioso, né, um sonho para qualquer ator negro... 

Você vê alguma evolução nessa postura? 

Eu fiz uma bispa num filme do Adnet e uma psiquiatra para um filme da Gisele Amaral. Eu tenho uma carreira de bons papéis. Mas isso não significa que eu não tenha perdido milhares de oportunidades porque eu sou negra. Senão eu teria feito todas as novelas de Jorge Amado. Havia uma época em que a Lucélia Santos podia fazer uma escrava Isaura. Agora não pode. O avanço é inegável. Eu estou chamando esse momento de hora furuncular. Essa epidemia de furúnculo, chamada racismo, está explodindo. Agora, o racismo não teve a sua história contada. Por isso que ele se normatizou na nossa história. Eu quero saber por que o meu quarto de empregada não é um quarto, mas uma dependência. Isso é o racismo estrutural. Isso é a normatização da Senzala. Existem estabelecimentos chamados Senzala, como se fosse legal esse nome. Mas, sem dúvida, estamos em novos tempos. Tinha uma época em que nós sequer éramos ouvidos. Hoje existem editores negros, escritores negros, como a Conceição Evaristo, que só agora está tendo reconhecimento. Enquanto um branco não estranhar, ao entrar em um restaurante e se deparar apenas com brancos, nós não vamos sair do lugar. É preciso que isso seja constrangedor. Ainda são muitos os escravocratas modernos... 

Fale do seu trabalho na ONU, o Projeto Vidas Negras. 

Meu trabalho na ONU é uma campanha. Nós estamos na década da Afrodescendência, e a ONU dedica seus esforços a este assunto. Este projeto é em parceria com a Organização Internacional do Trabalho (OIT). Só que já tem tempo que eu estou em parceria com a OIT, com o projeto “Versos de liberdade”, em que eu dou aula para meninos que cumprem pena nas instituições socioeducativas. Esse assunto é diretamente ligado à ONU, que se preocupa com as cadeias lotadas com meninos assediados pelo dinheiro do tráfico. Então, eu ensino poesia para eles. Uma gente de quem eles nunca ouviram falar, como Mário Quintana. Esse trabalho, o “Versos de liberdade”, chamou a atenção da ONU para o quanto há de senzala nos presídios brasileiros. São vidas negras, afinal, são correntes e corpos pretos. Através desse trabalho, feito pela instituição Casa Poema, que esse ano completa 20 anos, recebemos o selo de qualidade da ONU. E por dar oportunidade para presos através da literatura, a própria ONU me chamou para fazer o “Vidas negras”, junto com a Geovana Pires, porque vidas negras importam. O projeto tenta reduzir os danos com uma vida negra desperdiçada na cadeia e nas ruas. E esse assunto atrasa o Brasil em um grau…

Tem também o projeto Palavra de Polícia, Outras Armas. Que trata de poesia para policiais…

O policial não recebe formação humanista. Eu encontrei nesse projeto policiais lindos, gente bacana, que faz trabalho voluntário e é amigo da sua comunidade, mas não são fortalecidos pelo seu batalhão, porque isso não está no fundamento da formação policial. Encontrei gente de coração emocionante. É bom porque desmistifica o estereótipo do policial mau. É preciso que esse projeto seja entendido como uma ótima política pública. Eu e a Geovana Pires criamos o “Palavra de polícia, outras armas”. Um trabalho muito interessante, e eu tenho muita vontade que se torne uma política pública. Eles ficam impactados quando descobrem que podem recitar um Vinicius de Moraes. É muito importante cuidar de quem cuida. Nós demos aulas para os comandantes, depois para os policiais que estão começando e até para os carcereiros. E esse é um cara que não existe para a sociedade. Então é um projeto para cuidar de quem cuida. Nós levamos a palavra para quem dela foi excluído. E não tem cidadania sem narrativa. O que foi a grande virada do funk e do rap para nós? Foi através disso e da internet que nós passamos a ouvir uma voz que a gente não escutava. E foi uma voz que fez as pessoas saírem da história deles. O Emicida mudou a vida dele toda através da palavra. Eu tenho um poema com ele, “Milionários do sonho”, e várias pessoas têm esse poema tatuado. E o que um poema quer, meu deus, mais do que isso? E esses meninos, depois que aprendem, eles descobrem que decoraram aquele poema em pouco tempo e se veem com um futuro. Eles têm apenas 16 anos, são jovens, afinal. Mas ninguém joga uma semente para eles. E eles param de falar de cabeça baixa, querem voltar a estudar. Quem não sabe falar, não levanta a cabeça, é como se faltasse um dente. O jogo é de palavras. Quem não sabe falar, o patrão explora naquela conversa…

Sua opinião sobre a intervenção militar no RJ 

Eu tenho muita pena desses jovens profissionais que estão na Intervenção. Eles não têm uma preparação para isso; não foram treinados para isso. Eles foram ensinados a defender a pátria, é outra parada. Não é assim que se lida com comunidade. Então não resolve. Não é disso que a gente precisa. A gente precisa é de um Estado que faça valer os tributos, só isso, é simples assim. Pagamos impostos e esse dinheiro tem que bancar uma política de segurança que inclua a não exclusão das pessoas. Não é porque o cara é favelado que ele é obrigado a não ter esgoto. Não faz sentido esse desprezo. Ser pobre não é defeito. Então eu acho uma violência você não dar condições à periferia, condições de trabalho, é a mesma coisa que fizeram com a abolição da escravatura: não tinha escravidão, não tem emprego! Enquanto meninos mimados estiverem no poder não haverá divisão de brinquedos. Menino mimado não divide brinquedo. A Intervenção Militar não ajuda. É um remédio que não serve para este tipo de problema. É a posologia errada para essa doença. Se já é ruim com traficantes no Morro, com militares fica pior ainda. É guerra oficial na sociedade. 

Como você insere nesse contexto a morte da Marielle? 

Por isso que eu acho que a morte da Marielle foi mais do que pensavam que fosse. Ela representava um lugar onde não havia quase ninguém nos representando. Negra, mulher e gay. É muito. E inteligente, formada na PUC e cheia de articulação, poderosa, valente. Quando mataram a Marielle, balançaram a árvore. E apareceu um monte de semente. E nisso ninguém vai dar ré, e é nisso que mora a minha esperança. Por causa das políticas públicas, por causa das políticas de inclusão, das cotas, do FIES, muita gente entrou na universidade. E hoje essas pessoas são advogadas, médicas, juízas, jornalista. E ninguém dá ré nisso. Esse é um novo país que está desabrochando. 

Como foi a experiência de fazer um musical para o público LGBT? 

Foi ótimo fazer “L o musical”. Uma peça muito poderosa na minha vida, e eu fiz uma escritora de novela. Fui convidada pelo Sérgio Maggio. Um diretor e autor que mora em Brasília, mas é baiano. E esse cara é muito bacanérrimo. Fiz uma lésbica, e foi uma honra e um prazer. Quer dizer, a empatia a gente já tem, senão não seria atriz, mas foi lindo fazer essa história. Eu devo tanto às lésbicas e gays, e devo tanto a eles por hoje poder pensar diferente. Gostaria que as pessoas que não são negras se dedicassem ao racismo assim como eu, que sou hétero, me dediquei à causa LGBT e as relações homoafetivas. Essa história é uma discussão da minha vida. Por quê? Porque é o meu mundo, são os meus amigos. Eu não quero saber que um amigo meu foi linchado porque namora um homem. 

Fale de seu ativismo e de suas atividades 

Eu estou no que hoje se chama ativismo negro há muitos anos. Temos que provocar uma autocrítica, uma grande reflexão: Pode o racismo conviver com a fé? Essa é uma pergunta crucial. Estou também mergulhada nos caprichos de meu livro, “O Cavaleiro de Nada, uma autobiografa não autorizada do poeta Fernando Pessoa”, e finalista do prêmio São Paulo de literatura.

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VITÓRIO STORARO, diretor de fotografia italiano, gênio e filósofo, está no Brasil. Fez obras de arte como Apocalypse Now, Feitiço de Áquila, Reds, O Último Imperador. Ele abriu sua exposição, Escrevendo com a Luz, no MAM, onde participa hoje de evento pela Associação Brasileira de Cinematografia, dando um master class para vários profissionais importantes e estudantes.