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O racismo nosso de cada dia 

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Sabemos que o racismo é o conjunto de teorias e crenças que estabelecem uma hierarquia entre as raças socialmente reconhecidas nos espaços de sociabilidade. Além disso, compreendemos que essa teoria é o fator culminante do genocídio e extermínio de culturas e povos que buscam viver entre suas experiências históricas e culturais. 

Bem sabemos que, no Brasil, esse tipo de tentativa de supremacia racial se dá na construção de experiências que têm nas relações cotidianas seu lugar de práxis. Porém, a característica mais marcante do racismo brasileiro é seu caráter não oficial, ou seja, ele acontece nas entrelinhas das narrativas, na ação da polícia, no julgamento do judiciário, no acesso ao mercado de trabalho, na ausência de uma política educacional inclusiva, na distribuição de terra e no direito a moradia. Óbvio que no Brasil é a população negra que mais sobre com o racismo. 

É importante destacar que estas especificidades citadas acima não podem ser parâmetro para delimitar o racismo na nossa casa colonizada. A reprodução do racismo acontece nos espaços menos esperados. 

Estava eu e um grupo de amigos jantando no bandejão da universidade, e um caso muito racista me incomodou profundamente e me faz traze-lo à tona para problematizar como que essas experiências são traumáticas na vida da população negra brasileira. 

Nós éramos seis jovens negros jantando na PUC-Rio. Conversamos sobre a vida, sobre os desafios que enfrentamos na universidade e nos debruçamos no diálogo sobre uma peça teatral produzida por alunos de Artes Cênicas e que está em cartaz na PUC. Esses detalhes não vêm ao caso. 

O fato é que em meio ao bate papo natural fomos interpelados por uma senhora branca, aparentando entre 40 a 45 anos de idade, que veio tirar algumas dúvidas conosco. Perguntava ela: “Oi pessoal, estava ali atrás e vi vocês aqui. Queria saber como que eu faço para passar a noite aqui na PUC?” Trocamos olhares entre nós, mas antes de qualquer pronunciamento ela já voltou a falar: “Por que sabe, eu não tenho como ir pra casa hoje e vi vocês aqui e pensei que vocês saberiam me dizer como que dorme aqui na universidade.” 

Olhávamos uns para os outros novamente e o silêncio foi interrompido por um de nós que argumentava que não sabia como acontecia. Eu e mais dois amigos silenciamos e não conseguimos ao menos interagir com a senhora. Um amigo que estava na ponta da mesa respondeu nos olhando: “Ah, não sei lhe dizer... Aqui na PUC não dá para dormir né?!” Após uns olhares o silêncio momentâneo voltou à mesa e, com o rompimento dele, surgiu a resposta: “Não dá para dormir na PUC”. A senhora saiu meio cabisbaixa e voltou ao seu local de refeição, também no bandejão da universidade. 

O caso é que essa mesma senhora estava jantando na PUC. Não tenho como julgar suas questões financeiras e/ou condição social, lugar que mora etc., mas pude julgar que ela escolheu um grupo de seis jovens negros jantando na PUC para fazer essa pergunta. 

Fiquei me perguntando do porquê ela escolheu esse grupo específico de alunos da PUC para fazer essa pergunta. Fiquei imaginando o que poderia passar pela cabeça dela: "Negros na PUC devem dormir por aqui". "Um grupo de estudantes negros possivelmente mora longe da universidade e não teria grana para ir pra casa todo dia". "Se tem dormitório aqui, esses alunos devem dormir aqui". 

Essa mesma senhora não se deu o trabalho de perguntar isso para mais ninguém. O bandejão é um lugar muito frequentado. Tinha mais de 50 pessoas comendo no mesmo horário e ela decidiu vir ao nosso encontro. Ela passou por mais outros 44 ou mais alunos da universidade e não se preocupou em pergunta-los como que se faz para dormir na PUC. Ela veio na nossa direção. Na direção dos seis negros que jantavam juntos. 

Se foi proposital ou não essa interpelação, eu não sei. Sei que o racismo sorrateiramente deixou sua marca nessa noite. Ver nitidamente uma pessoa branca vir ao nosso encontro para perguntar como que são as facilidades da universidade ou de como que damos ‘nosso jeito para sobreviver em um espaço elitista’ é uma faceta cruel do racismo institucional. 

Essa experiência pode ser interpretada de muitas maneiras. Porém, quem vive sendo monitorado com o olhar suspeito, que é julgado sem ser culpado, que não tem direito de ter direitos, carrega sobre si o peso do racismo institucional à moda brasileira. 

* Walmyr Junior é morador de Marcílio Dias, no conjunto de favelas da Maré, é professor, membro do MNU e do Coletivo Enegrecer. Atua como Conselheiro Nacional de Juventude (Conjuve). Integra a Pastoral Universitária da PUC-Rio. Representou a sociedade civil no encontro com o Papa Francisco no Theatro Municipal, durante a JMJ