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Três cenários da crise presidencial

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A revelação do conteúdo da gravação da conversa entre Joesley Batista, proprietário da JBS, e o presidente Temer vem sendo um divisor de águas na trajetória do governo pós-impeachment. Se, até então, o Executivo conseguia sustentar a governabilidade, reunindo ampla maioria no Congresso, mas não possuía legitimidade, após o episódio, que se desdobrou em autorização do STF para a investigação do presidente da República por suspeita de praticar três crimes (corrupção passiva, obstrução à justiça e envolvimento em organização criminosa), a própria condição de governabilidade já não é mais a mesma, devido ao abalo que os novos fatos provocaram nos partidos da base.

Mudou a relação de forças, tanto na esfera institucional quanto na social, mas, como o processo de rearticulação política está em curso e os atores dependem de decisões em andamento para definirem suas preferências futuras, fica difícil prever qual será o desfecho da crise presidencial. No entanto, é possível arriscar o desenho de três cenários: Temer fica ou cai; nesse último caso (renúncia ou cassação), o substituto pode ser empossado por via indireta, conforme prevê a Constituição, ou por eleições diretas, alternativa que depende da aprovação de uma emenda constitucional. Por ora, descartarei a alternativa do impeachment, por ser a mais demorada e, salvo engano, a menos provável.

A probabilidade de Temer concluir seu mandato reduziu-se. Aumentou a chance de um desfecho desfavorável ao presidente no julgamento do processo de cassação de sua chapa com Dilma às eleições de 2014, que será retomado em 6 de junho. Além disso, as tratativas para um sucessor indireto e a própria campanha por eleições Diretas Já estão em curso. Em todo o caso, Temer busca reagir à encrenca em que se enfiou. Por um lado, tenta estancar as perdas em sua base e direciona sua coalizão para a continuidade das reformas trabalhista e previdenciária. Mas PSB, PPS, PTN e PHS, que somam 66 deputados federais, já romperam com o governo, juntando-se à oposição. Por outro lado, a mudança de titular na pasta da Justiça, saindo Osmar Serraglio e entrando Torquato Jardim, agrada a base aliada, acuada pela Lava jato, e expressa uma tentativa de autodefesa de Temer, que, tal como muitos de seus correligionários, tem interesse em contar, o quanto possível, com uma Polícia Federal menos ameaçadora e com canais melhores de interlocução com o STF e o TSE. Mas esse contra-ataque abre mais contradições entre as forças que apoiaram a deposição de Dilma. Caso o presidente consiga cumprir todo o seu mandato, aquilo que já estava ruim em termos de clima político tende a piorar e é incerto qual será o impacto disso na capenga economia nacional.

A oposição já anunciou a obstrução dos trabalhos legislativos até que a comissão de impeachment seja instalada, com base em um dos 14 pedidos já protocolados na Mesa Diretora, entre os quais o assinado pelo Conselho Federal da OAB. A base governista mais fiel procura resistir e prosseguir com as reformas, que são para ela uma força estrutural de sustentação de sua ação, com ou sem Temer. No entanto, as divergências em relação ao conteúdo concreto das mudanças tendem a aumentar. A reforma trabalhista está mais avançada, já foi aprovada na Câmara e encontra-se no Senado, onde já foi analisada pela Comissão de Assuntos Econômicos e aguarda agora a Comissão de Constituição e Justiça e a Comissão de Assuntos Sociais, antes de ir para a votação final em plenário. Em relação a essa reforma, as disputas políticas aumentaram ainda mais com a crise presidencial. Por outro lado, a reforma da Previdência está para ser votada no plenário da Câmara, sob a liderança de Rodrigo Maia, fiel aliado de Temer, mas essa matéria é talvez ainda mais polêmica.

Se Temer renunciar ou for cassado pelo TSE, a disputa em torno de um nome de consenso entre os governistas já se mostra uma equação difícil de ser resolvida. PMDB, PSDB e DEM, os três principais partidos coalizados na (des)ordem atual, tendem a disputar espaço e, como todas as agremiações foram prejudicadas por suas ligações com as irregularidades investigadas na Lava Jato, todos sentem-se “iguais” e com o mesmo direito e ambição de emplacar o eventual sucessor. A mera menção pública feita pelo governador Geraldo Alckmin de dois nomes tucanos, Tasso Jereissati e Fernando Henrique Cardoso, foi criticada tanto pelo PMDB como pelo DEM. A alternativa de um nome externo, como o de Modesto Carvalhosa, de setores da sociedade civil liderados por alguns juristas e advogados, esbarra em questões legais, pois ele não é filiado a nenhum partido político, conforme requer a lei. O STF precisaria se posicionar sobre a legalidade dessa alternativa.

Por outro lado, a insatisfação com as reformas e com o sistema político tem reagrupado setores populares da sociedade civil, como se evidenciou na greve geral de 28 de abril e, mais recentemente, no reforço alcançado pelos que defendem as Diretas Já, tendo como gancho institucional a proposta de emenda constitucional de autoria do deputado Miro Teixeira (Rede-RJ). No domingo, 28 de maio, um massivo ato em defesa das eleições diretas, organizado pela Frente Brasil Popular e pela Frente Povo sem Medo, reuniu mais de 100 mil pessoas na praia de Copacabana. A novidade é que a esquerda está conseguindo, na luta contra as reformas e pela deposição de Temer, retomar o diálogo e a ação conjunta com setores sociais mais amplos que seus ativistas regulares. Ou seja, a oposição de esquerda está aos poucos saindo do isolamento em que foi sendo empurrada desde 2015, com a ofensiva das forças de direita.

Há três cenários na crise presidencial, todos eles difíceis. A continuidade de Temer, que parece ter se enfraquecido, alimenta e unifica a oposição institucional e social, podendo colocar a aprovação das reformas em risco. Um elemento-chave é o comportamento dos grandes capitalistas em relação a essa perspectiva. A Globo partiu para o ofensiva contra o presidente, mas opta pela alternativa prevista na Constituição. A deposição pela via indireta envolve dois problemas: por um lado, a obtenção de um nome de consenso tanto entre os atuais governistas como entre as forças que apoiam a luta contra a corrupção em uma perspectiva liberal, vinculada à continuidade das reformas antipopulares e, por outro, a aceitação dessa solução pelo eleitorado, que, segundo dados de opinião pública, prefere as eleições diretas e rejeita o atual Congresso Nacional. Por fim, a alternativa do restabelecimento da soberania popular, pelo retorno imediato do voto direito, em função da ferida provocada pelo impedimento sem claro crime de responsabilidade e, ainda mais, pelo envolvimento de Temer em irregularidades cometidas durante o atual mandato, parece ser promissora em termos de obtenção de respaldo na sociedade civil, mas precisaria ter a força suficiente para ser aprovada pelo parlamento em votação que exige quorum qualificado. Como os historiadores futuros narrarão essa impressionante crise brasileira?

* Marcus Ianoni é cientista político, professor do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense (UFF), realizou estágio de pós-doutorado na Universidade de Oxford e estuda as relações entre Política e Economia