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Temer e a Lei de Gerson

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Um dos princípios estruturantes da ordem social capitalista é a competição. Florestan Fernandes, brilhante professor do qual tive a honra de ser aluno, qualificava a sociedade capitalista como uma ordem social competitiva. A competição é uma consequência da validação social da ação motivada pelo interesse pessoal. Em que medida essa ordem social não institui a Lei de Gerson nas práticas econômicas e políticas? Em que medida a sustentação de Temer pela coalizão entre o grande capital e os partidos da base governista não decorre da primazia do interesse egoísta dos atores políticos e privados, à custa da ética e da coerência entre meios e fins?

Para o pensamento econômico liberal, a começar por Adam Smith, ao buscarem seu próprio ganho, os indivíduos geram resultados não intencionais, socialmente benéficos, como se estivessem liderados por uma mão invisível. Essa polêmica tese do liberalismo serve de justificativa filosófica para a competição na economia de mercado. Os liberais também concebem a democracia como inserida em um mercado político, no qual os partidos competem entre si pelo voto dos eleitores, sendo o sistema representativo baseado no sufrágio universal um mero mecanismo de seleção das lideranças.

Não raramente, na história do capitalismo, a busca da vantagem competitiva leva as empresas, a começar pelas grandes, a renunciarem à ética e partirem para a fraude, espionagem, suborno, etc. Ainda se observa o trabalho infantil, principalmente na Ásia, África e América Latina, o trabalho escravo e superexploração do trabalho. Entre as causas da crise de 2008, estão os incentivos a ganhos ilimitados pelos executivos das instituições financeiras, que os induzem a práticas corporativas irresponsáveis, manipulações contábeis, sonegação fiscal e assim por diante. O capitalismo ultraliberal tem pressionado contra a qualidade da democracia.  O bem comum que se espera resultar das políticas públicas vem sendo sacrificado em benefício do bem dos ricos.  Nesse processo, em vários países do mundo o tema da corrupção tem sido debatido na esfera pública, principalmente em períodos eleitorais. Ademais, os partidos políticos, de um modo geral, estão na berlinda, sendo inclusive ameaçados pela onda autoritária supostamente apolítica.

Essa cultura da astúcia desregrada, acentuadamente oculta na meritocracia da competição, é muito forte e permeia as práticas empresariais destinadas a enfrentar a concorrência. Mas como temos visto no Brasil, essas práticas imorais e amorais também são recorrentes nas relações privado-público. Com freqüência, a concorrência é menos a alma do negócio que da negociata e a ética na política, como diria o elitista Robert Michels, parece mais uma história da carochinha para iludir as massas.

O governo Temer veio ao mundo no contexto da imensa onda de combate à corrupção, que propositadamente misturou as pedaladas fiscais e os crimes contra a administração pública. Basta, por exemplo, rever o vídeo do que se passou na lamentável votação ocorrida em 17 de abril de 2016 na Câmara dos Deputados. Não obstante, estamos à véspera de uma decisão que tende a explicitar a primazia da Lei de Gerson, a lei da vantagem sem freio, liberada do regramento moral, governada pela mão invisível da ganância econômica e da ambição política e a serviço de interesses particulares.

Amanhã (dia 2 de agosto) a Câmara deverá apreciar se o presidente Temer será ou não processado por corrupção passiva, conforme denúncia da PGR. No entanto, salvo exceções, o grande capital apoia o governo pós-impeachment, pois as reformas neoliberais estão sendo aprovadas, embora haja dúvidas quanto à amplitude da reforma da previdência, pelo seu impacto eleitoral. Os ativistas de direita desapareceram das ruas, financiados que são pelo poder econômico, ao mesmo tempo em que apoiam as reformas orientadas para o mercado e para o Estado mínimo.

Nesse contexto, há, por um lado, o presidente mais impopular da história do país e, por outro, uma minoria de atores sociais e políticos, com fortes recursos de poder dando-lhe sustentação, em nome da ordem social competitiva, em nome dos interesses dos grandes jogadores da economia de mercado e dos partidos da ordem conservadora, que se preocupam muito mais com sua própria ganância e carreiras, que com a construção de uma sociedade justa e democrática e com a coerência moral. A ordem política que interessa ao mercado é a que hoje domina a Praça dos Três Poderes, uma ordem segundo a qual só a corrupção advinda das forças partidárias e sociais que atrapalham a primazia dos mercados e das oligarquias precisa efetivamente ser combatida. A tendência na Câmara dos Deputados parece ser a da não autorização do processo contra o presidente da República. Mas novas denúncias contra Temer devem surgir. Às vezes, em nome da Lei de Gerson, alguns aliados precisam ser sacrificados, mesmo que a contragosto. Vamos acompanhar. 

* Marcus Ianoni é cientista político, professor do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense (UFF), realizou estágio de pós-doutorado na Universidade de Oxford e estuda as relações entre Política e Economia