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Globalização e desigualdade 

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Nos últimos 40 anos a globalização criou alguns mitos, que, em análise mais criteriosa, não se revelaram verdadeiros, pelo menos em seu todo. 

Em artigo publicado no último número da HARVARD BUSINESS REVIEW, o coordenador geral do Relatório Mundial da Desigualdade de 2018*, Lucas Chancel, sumariza alguns desses mitos. Primeiro, a globalização levaria a uma redução da desigualdade global. Segundo, o alto crescimento da renda entre os mais ricos elevaria os rendimentos dos mais pobres. Terceiro, como consequência das duas assertivas anteriores, não haveria alternativa para o combate ao aumento das desigualdades que não passasse pelo estimulo às políticas ativas de valorização do comércio internacional e à maior difusão de tecnologias. 

O Relatório Mundial de Desigualdade 2018 é o primeiro estudo feito para analisar de forma detalhada a tendência do comportamento da geração e da distribuição da riqueza, bem como do comportamento da desigualdade de renda em países ricos e emergentes ao longo de aproximadamente 40 anos. Em bases gerais, indica que a globalização levou a um aumento da desigualdade de renda global e não a não uma redução. 

A desigualdade entre indivíduos em todo o mundo é o resultado de duas forças concorrentes: desigualdade entre países e desigualdade dentro dos países. Por exemplo, um forte crescimento na China e na Índia contribuiu para um aumento significativo da renda global e, portanto, diminuiu a desigualdade entre os países. No entanto, a desigualdade nesses países aumentou acentuadamente. A fatia da população no extrato mais alto aumentou sua participação na renda total, saindo de 7% para 22% na Índia e de 6% para 14% na China, entre 1980 e 2016.

Até recentemente, era impossível saber qual dessas duas forças era predominante. Faltavam dados sobre tendências de desigualdade dentro dos países, já que muitos governos não liberam publicamente ou uniformemente. O Relatório Mundial de Desigualdade 2018 aborda esta questão baseando-se em estatísticas de desigualdade sistemáticas, comparáveis e transparentes de países de alta renda e emergentes. 

A conclusão é impressionante. Entre 1980 e 2016, a desigualdade aumentou, apesar do forte crescimento dos mercados emergentes. De fato, a parcela do rendimento global acumulado pelo 1% mais rico cresceu de 16% em 1980 para 20% até 2016. Enquanto isso, a participação na renda dos 50% mais pobres girava em torno de 9%. Os 1% maiores - indivíduos que ganham mais de US$ 13,500 por mês - capturaram globalmente o crescimento de renda duas vezes maior que os 50% inferiores da população mundial durante esse período. 

Há quem afirme que um alto crescimento no topo é necessário para conseguir algum crescimento no final da distribuição, ou seja, é necessário o aumento da desigualdade para elevar os padrões de vida entre os mais pobres. Todavia, essa ideia está em desacordo com os dados. 

Quando comparamos a Europa com os EUA ou a China com a Índia, é claro que os países que apresentaram maior aumento na desigualdade não foram os mais eficientes para elevar os rendimentos dos cidadãos mais pobres. Na verdade, os EUA são o contra-argumento extremo do mito do gotejamento: enquanto os rendimentos cresceram em mais de 600% para o topo dos 0,001% dos americanos desde 1980, a metade inferior da população foi realmente desligada do crescimento econômico, com um acréscimo de zero em sua renda anual. 

Na Europa, o crescimento entre os principais 0,001% foi cinco vezes menor do que nos EUA, mas a metade mais pobre da população ficou muito melhor, experimentando um crescimento de 26% em seus rendimentos médios. 

Apesar de ter uma taxa de crescimento consistentemente maior desde 1980, o aumento da desigualdade na China foi muito mais moderado do que na Índia. Como resultado, a China conseguiu elevar os rendimentos da metade mais pobre da população a uma taxa quatro vezes mais rápida do que na Índia, permitindo uma maior redução da pobreza.

Costuma-se dizer que o aumento da desigualdade é inevitável - que é uma consequência natural da abertura comercial e da digitalização que os governos são impotentes para contrariar. Mas os números apresentados acima demonstram claramente a diversidade das trajetórias de desigualdade experimentadas por regiões amplamente comparáveis nas últimas décadas. 

Os EUA e a Europa, por exemplo, tiveram tamanho de população e renda média semelhantes em 1980 - além de níveis de desigualdade análogos. Ambas as regiões também enfrentaram uma exposição semelhante aos mercados internacionais e às novas tecnologias desde então, mas suas trajetórias divergiram radicalmente. Nos EUA, a parte dos 50% da população do extrato inferior da renda diminui de 20% para 10%  a participação na renda nacional hoje, enquanto na Europa diminuiu de 24% para 22%. 

Reexaminar essas opiniões generalizadas em torno da globalização e seus impactos na desigualdade global é mais importante agora do que nunca. O uso de novos dados do Relatório Mundial de Desigualdade 2018 é o primeiro passo para retificar esses mitos e gerar um novo discurso público que tem o potencial de efetuar mudanças sistêmicas duradouras.