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Seca de 1932 levou à criação de campos de concentração no Ceará

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Um bem raro do lado de fora da casa: o tambor azul encontrado em meio à caatinga com a tampa preta. Quem cuida é um homem de azul com o chapéu preto. Ele enfrenta o céu azul, infinito quente, enquanto recolhe os troncos de madeira cortados em meio aos cactos. A área, mesmo com as chuvas rareadas de começo de ano, permanece sob o cinza sertanejo. Os troncos vendidos, que aguardam para serem transportados na carroça de ripas gastas e quebradas, podem render R$ 30, na melhor das sortes. A esperança é tentar trocar por água boa. Mas, com esse dinheiro, não vai dar para encher o tambor azul, nem para esfriar a cabeça.

A rotina é, pela manhã, encher o tambor no açude e tampar para as moscas não chegarem perto. “Mas não é água para beber”, lamenta Francisco Assis da Silva, 33 anos, agricultor, vaqueiro. O caminho leva uma hora para ir e voltar, a depender do ânimo do burro batizado de Zeca Pagodinho. Acabrunhado, o bicho espera o grito do homem de sorriso raro como a chuva. À tarde, é momento de vender os troncos para conseguir o dinheiro. Na casa simples em Senador Pompeu, no sertão cearense, Francisco vive com a esposa, que “está triste e não quer sair do quarto”, e uma filha, de 10 anos. 

No caminho para o açude, atravessa um conjunto arquitetônico formado por casarões abandonados, caatinga e silêncio. Mal sabe que é “vizinho” de edificações históricas que marcaram a seca de 1932 (que inspirou obras como Vidas Secas, de Graciliano Ramos, publicada há 80 anos). A 50 metros da casa de Francisco, se instalou, há 86 anos um campo de concentração de flagelados em casarões antigos erguidos pelo Departamento Nacional de Obras Contra a Seca (Dnocs). O que sobraram foram paredes e estruturas curiosamente preservadas a despeito do tempo. Da janela que ficou, a vista não é mais a mesma, a cidade não é mais a mesma, e não se morre como antes.

Em Senador Pompeu, naquele tempo, 16.221 pessoas ficaram concentradas sob alegação do governo de que estariam protegidas. “Foi absolutamente cruel, mas houve discursos humanistas. O discurso era que o confinamento seria para cuidar das pessoas, mas passaram a morrer oito, nove, dez pessoas por dia”, explica a historiadora e professora da Universidade Federal do Ceará (UFC), Kênia Rios. Somado ao de Senador Pompeu, outros seis campos, em todo o Ceará, concentraram naquele ano ao menos 73.918 flagelados, segundo registro do jornal O Povo da época. O número de mortes por conta de doenças diversas nunca foi oficialmente contabilizado.