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Advogada argumenta que criminalização do aborto aumenta mortes de mulheres

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Filha do advogado criminalista George Tavares, a também advogada criminalista Kátia Tavares, 56 anos, pavimentou sua própria trajetória. Ela foi a autora do parecer favorável à descriminalização do aborto pelo Instituto dos Advogados do Brasil (IAB), abordado em recente audiência pública convocada pela ministra Rosa Weber para discutir a Arguição de Preceito Fundamental (ADPF) nº 442, proposta pelo PSOL para descriminalizar o aborto até a 12ª semana. Com a garra de quem teve de garantir seus direitos femininos no escritório do próprio pai, Kátia tece sólidos argumentos contra os que propõem a condução do tema pelo Poder Legislativo, por motivos morais ou religiosos. “Essa questão não deve ser examinada como caso de polícia, de justiça ou direito penal, mas sim como caso de saúde pública”, defende.

O senado argentino acaba de negar a descriminalização do aborto, e o presidente Mauricio Macri promete rever o Código Penal, que deve eliminar a prisão de mulheres por aborto. Como esse quadro pode in?uenciar o Brasil, que acaba de discutir o mesmo tema no Supremo Tribunal Federal (STF)? 

Já existe política de descriminalização do aborto nos Estados Unidos e na Alemanha desde 1970, determinada pelas cortes supremas destes países. Aqui no Brasil o caminho deveria ser pelo poder Legislativo, porém todos conhecemos nosso Congresso. O primeiro país a descriminalizar o aborto foi a Rússia, em 1920. Depois vários países europeus fizeram o mesmo, da Bélgica, em 1933, à Noruega, em 1960, seguidos por outros posteriormente. O caminho da Alemanha e do Estados Unidos não se deu pelo poder legislativo, como foi na Colômbia, no México e em Portugal. A Argentina optou pelo caminho do poder legislativo. A decisão contrária do Senado atingiria um enorme número de mulheres criminalizadas, presas, quando é uma demagogia dizer que não existe a prática do aborto, uma realidade cotidiana. No entanto, optamos pelo caminho da Suprema Corte. Aqui a criminalização atinge sobretudo as mulheres negras, indígenas e nordestinas, as mais vulneráveis.

A criminalização do aborto poderia ajudar a reduzir o número de mulheres que buscam essa alternativa? Existem estatísticas sobre as mortes causadas pelo aborto clandestino? 

Estima-se, embora não haja estatísticas confiáveis, que ocorra um milhão de abortos por ano no Brasil. Também não existem estatísticas sobre este tipo de óbito. Agora em julho, faleceu uma moça negra de Petrópolis, por este motivo. O que precisávamos era de uma política educacional, uma política pública voltada para amparar essas mulheres. O aborto é uma opção, uma escolha da mulher. A proibição não  impede essa prática, pelo contrário, ela é feita de uma forma insegura e insalubre. Quando fizeram a autópsia dessa mulher de Petrópolis verificaram que ela introduziu pedaços de mamona no útero, prática feita por pessoas sem qualificação ou experiência. Desesperadas, as mulheres acabam optando por expedientes inseguros e põem em risco a própria vida.  

O que propõe a Arguição de Preceito Fundamental (ADPF) nº 442, em trâmite no STF? 

A descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação, conforme ajuizou o PSOL, e questiona a criminalização da prática do aborto proposta pelos artigos 124 e 125 do Código Penal. Esta ADPF sustenta que a nossa Constituição Federal, de 1988, por ser uma constituição cidadã, contempla garantias como a da dignidade humana, da liberdade e da cidadania. Por ser de 1940, o Código Penal não foi recepcionado por nossa Constituição, ele está defasado em relação a essas garantias. Por isso, é declarada a inconstitucionalidade desses artigos em relação ao aborto. Esse não é um assunto que deva ser tratado como caso de polícia, mas de saúde pública. A mulher presa é exposta, algemada em macas, fica com sua vida devassada, a família, os filhos e a comunidade acabam sabendo. Há várias violações de direitos humanos e constitucionais, como a privacidade, a autonomia, a livre escolha do planejamento familiar. 

Além dos argumentos da Constituição cidadã, o que mais sustenta a defesa da ADPF? 

Em 2006, elaborei um parecer durante o governo Lula para descriminalizar o aborto anencefálico (fetos sem cérebro), processo iniciado em 2004, discutido no STF pela ADPF 54. Na época, Lula deu entrevistas dizendo que ficava chocado com os abortos inseguros praticados por mulheres nordestinas, que introduziam agulhas de crochê no útero. Ele reconhecia isso, assim como o então Ministro da Saúde, José Gomes Temporão, que também participou das discussões da atual ADPF, reconhecendo que o aborto deveria ser descriminalizado. Esse parecer só pela descriminalização do aborto em fetos anencefálicos só foi aprovado em 2012. O aborto também passou a ser permitido em caso de estupro ou de grave risco de vida pela mulher. O Supremo vem reconhecendo a descriminalização do aborto em processo histórico de jurisprudência. A Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIN) 3510, de 2015,  era relativa à lei sobre pesquisa de células-tronco, para um posicionamento sobre essa pesquisa, que usava embriões. Questionou-se, então, o estatuto da pessoa, se a personalidade se firma na concepção ou no nascimento, quando têm de ser resguardados os direitos fundamentais da pessoa. Nesse julgamento o STF afirmou que o estatuto da pessoa começa no nascimento, quando se começam a ser resguardados os direitos fundamentais da pessoa. Em 2016, houve o Habeas Corpus 124.306, julgado pelo STF, que libertou vários funcionários de uma clínica de aborto clandestina. O ministro Luís Roberto Barroso declarou que todas essas questões ficaram bem sedimentadas, mostrando que a criminalização do aborto atinge a dignidade das mulheres, e foi acompanhado por vários outros ministros, que incluíram aí a cidadania, a autonomia e a opção sexual e de planejamento familiar. Com base nesse histórico de decisões do Supremo, a atual ADPF pretende que a Corte Suprema declare inconstitucional os artigos 124 e 125 quanto à criminalização do aborto.

A senhora faz alguma estimativa sobre qual seria a tendência do STF quando esta matéria for votada? 

Entendo que a maioria dos ministros apoiaria a descriminalização do aborto. A própria ministra Rosa Weber foi favorável ao Habeas Corpus 124.306 e o ministro Barroso fez um voto que também sustenta essa ADPF. Cada um dos ministros tem suas próprias convicções, no entanto, a maioria tem amparado esse tipo de decisão, que trata dos direitos humanos das mulheres. Nós estamos num momento crucial. A história da mulher é a história da sua própria sobrevivência. O aborto na Idade Média era punido na fogueira. Hoje, no século 21, a mulher vive a conquista de suas lutas. Neste mês de agosto, comemoramos o aniversário da Lei Maria da Penha, para coibir a violência doméstica. Ainda temos muito que lutar. Eu mesma sofri muito preconceito do meu pai, defensor de presos políticos: sempre ganhei menos do que meus colegas. A criminalização do aborto se insere nessa discriminação que a mulher ainda sofre na sociedade.

Apesar dessa jurisprudência, a audiência pública continuou a discutir o tempo considerado vida para o feto. 

A ADPF se sedimenta nessas 12 semanas, e o voto do ministro Barroso foi nesse sentido, porque há estudos comprovando que esse tempo não representa risco para a vida da mulher. Ouvi diferenças de pensamento na audiência pública. Entendo, porém, que o assunto é uma questão de proporcionalidade e razoabilidade. Nossa constituição prevê todos os direitos fundamentais basilares. Temos que examinar essa polaridade entre direitos fundamentais do feto e direitos fundamentais das mulheres, como se fosse uma balança. Essa proporcionalidade é desproporcional.  A criminalização do aborto provoca uma perda de vida muito maior de mulheres, do que se o aborto fosse feito numa clínica ou em um hospital público. Quem é a favor do aborto? Ninguém pode ser. Somos contra a criminalização, que deixa a situação ainda mais dramática. A classe rica vai para uma clínica especializada e paga pelo aborto seguro. A sociedade precisa se conscientizar desse quadro injusto, que atinge as mais vulneráveis.