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A democracia sob a obscuridade

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Mesmo após terem se passado mais de cinquenta anos desde a publicação do primeiro artigo sobre os poderes ocultos e a violência de Estado, os escritos de Norberto Bobbio, em que o filósofo político trata do poder invisível e do Estado dual, ainda permanecem vivos e perfeitamente aplicáveis à realidade política do Brasil.

Ao lermos a coletânea de textos Democracia e segredo, organizado por Marco Revelli, dedicados aos bastidores da política na Itália da segunda metade do século passado, temos a impressão de que as ideias de Bobbio foram baseadas no contexto sociopolítico brasileiro contemporâneo. O pensador italiano considera que a democracia é o governo do poder visível e que o poder opaco é a negação da democracia.

O autor se refere às tentativas de desestabilização e subversão da ordem constitucional e republicana e do Estado democrático de direito na Itália do século XX, onde indivíduos, grupos e organizações praticaram, dentro do Estado, atos delituosos moralmente condenáveis. De acordo com Bobbio, o poder oculto é uma patologia, uma doença mortal da democracia.

O politólogo identificou, no contexto italiano, várias formas assumidas pelo poder invisível. A primeira delas é um poder que age contra o Estado, e é representado por associações delituosas, grandes organizações criminosas e seitas políticas secretas. Em segundo lugar aparece o poder que surge para combater o poder público e se aproveitar, de modo ilícito, para extrair vantagens indevidas. Terceiro, é o poder invisível encarnado na figura de instituições de Estado, a exemplo daquelas de serviço secreto que praticam atos e ações fora do controle do governo e do poder visível.

É inadmissível a existência, em um regime democrático, de um poder invisível, afirmou Bobbio. Poder que age em segredo, paralelamente e na contramão do Estado democrático de direito, motivados por um desejo desmesurado de poder, ambição ou estúpida vaidade.

As ações espúrias denunciadas por Bobbio, na Itália, também representam bem algumas das práticas ilegais e criminosas, que têm sabotado o Estado democrático brasileiro e afrontado a ordem republicana. A Operação Lava Jato expôs como nunca os poderes ocultos que operam nos subterrâneos do Estado brasileiro. Podemos também citar: o esquema de lavagem de dinheiro, comandado pelo ex-governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral; o escândalo do Mensalão e o escândalo do Banestado, só como exemplo.

Estes fatos nos levam a acreditar que a crise de legitimidade do sistema democrático do país é, antes de tudo, uma crise ética e moral, fundada pela ausência de caráter e espírito republicano na maior parte dos governantes e funcionários de instituições públicas. A associação criminosa de integrantes da classe dirigente para obtenção de vantagens pessoais é moralmente condenável, disse Bobbio; esses oferecem um espetáculo miserável quando os atos delituosos vêm à tona e expõem as transações ocultas de atores inescrupulosos.

Quem hoje escuta a música Vai Passar, composição de Chico Buarque e Francis Hime, pode reconhecer a extraordinariedadeda letra e a pertinência da composição de 1984 ao contexto político atual do país.

“Dormia 

A nossa pátria mãe tão distraída 

Sem perceber que era subtraída 

Em tenebrosas transações”

Peculato, tráfico de influência, suborno, desvio e lavagem de dinheiro, compra de apoio político, cobrança de propina etc. Estes formam um sistema de práticas criminosas, sintetizadas pela expressão "corrupção", que se constituem em uma palavra chave que permeia ao imaginário político que se tem do Brasil.

Diante desse quadro político-institucional, torna-se cada vez mais difícil acreditar nas promessas de fortalecimento de figuras da legitimidade democrática que vivem ao lado da legitimidade do sufrágio universal, conforme propôs Pierre Rosanvallon. Seria muito ingênuo, de nossa parte, acreditar piamente na emergência, no Brasil¸ de formas de legitimidade democrática que o autor define como: “legitimidade de imparcialidade” “legitimidade de reflexividade” e “legitimidade de proximidade”, essas três modalidades têm como cerne a res publica, termo este utilizado no duplo sentido sobre o qual fala Bobbio – governo do público e de governo em público.

O nosso “pé-atrás” se justifica não somente pelos segredos sombrios escavados pela Lava Jato, mas pelos desdobramentos dessa operação e das reações e medidas tomadas pelos suspeitos delituosos em uma clara e evidente tentativa de salvar tanto a si próprio quanto os seus comparsas. Além disso, a legitimidade de reflexividade, formada pelas instituições de imparcialidade e pelas cortes constitucionais, dá claros sinais da ausência de distanciamento dos interesses partidários em conflito.

Semanalmente, ou quase que diariamente, a mídia divulga atos que, cobertos pelo véu da invisibilidade e praticados na zona de sombra, levanta suspeitas sobre a imparcialidade das instituições judiciárias brasileiras. A máxima discursiva segunda a qual as instituições estariam funcionando bem levanta hesitações. No reino das sombras, cabe perguntar se mistérios sempre hão de existir por aí? O que esperar da Lava Jato quando a classe dirigente tenta, a todo custo, sabotá-la e quando sobre as instituições de imparcialidade pesam dubiedades e a desconfiança popular?

* Sérgio Borges é geógrafo e doutorando em Geografia na Universidade Federal do Rio de Janeiro