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Na corda bamba de sombrinha

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A Colômbia é um país ferido por sangrenta e interminável guerra, ao mesmo tempo que ansiosa por uma paz que se constrói lenta e tenazmente. Ali, em meio a várias visitas, Francisco falou aos membros e representantes do CELAM (Conselho Episcopal Latino-Americano). E pronunciou belo e poético discurso tendo como centro a esperança, a teologal virtude que tem talento de equilibrista e “dança na corda bamba de sombrinha”, como em meio aos horrores da ditadura brasileira, cantou o poeta João Bosco, aliás explicitamente citado pelo Papa. 

Nessa esperança, segundo o Papa, estamos treinados os latino-americanos, especialistas que somos em equilibrismos e acrobacias para continuar vivendo, lutando, dançando e celebrando.  E ela tem, em nossas latitudes, ainda segundo ele, rosto feminino. Inúmeros rostos femininos do continente desfilaram diante dos olhos dos bispos ali reunidos, descritos pelos lábios do Pontífice.  As mulheres e mães indígenas e morenas, as trabalhadoras que cumprem valentemente sua tripla jornada de trabalho, as avós catequistas, as religiosas, as consagradas de toda sorte, discretas artesãs do bem.

Sobre elas repousa a Igreja do sul da América.  Pois sem elas, essa mesma Igreja perderia a força e a paciência de renascer continuamente, de acender uma e outra vez a chama às vezes trêmula e bruxuleante da fé. Com sua sensibilidade, o Papa sabe que o desejo por uma fase nova, mais vital da fé cristã nessas latitudes, não se realizará sem o concurso das mulheres. Por isso mesmo, voltou Bergoglio a suas sempre renovadas advertências sobre o perigo do clericalismo.  E pediu aos bispos que valorizem as mulheres, que as respeitem, que não as reduzam a servas e funcionárias “do nosso clericalismo recalcitrante”.  

Francisco sabe de onde e para onde fala.  Não é de hoje que a mulher abre caminhos na Igreja e sustenta e anima a esperança da comunidade cristã quando essa ameaça desfalecer.  As coisas têm sido assim desde o tempo de Jesus.  Foram elas que seguiram o Rabi desde a Galileia até Jerusalém; que perseveraram com ele até o fim; que não se retiraram do pé da cruz, acompanhando-o em sua agonia; que prepararam unguentos e perfumes para ungir seu corpo, acreditando na vida e não na morte; que esperaram “que a noite da morte devolvesse o Senhor da vida”.  Foram elas, enfim, que receberam o primeiro anúncio da Ressurreição e com o júbilo desta boa notícia inundaram o mundo.  E assim reacenderam a chama da fé dos apóstolos, mergulhados em tristeza e desolação com a perda do Mestre. 

As mulheres sabem da vida. Elas têm inscrita em seus corpos a sede da vida.  Por isso, perseveram e não desanimam nem em meio às piores adversidades.  De norte a sul do continente, as mulheres se fazem presentes onde há sofrimento e morte para clamar pela vida.  No deserto do Atacama, no Chile, as mulheres de Calama buscam incansavelmente os restos dos maridos, irmãos e filhos que o terror matou, mas que o deserto devolve, incorruptos.  No centro de Buenos Aires, as “loucas” da Praça de Maio cobrem a cabeça com as fraldas dos filhos desaparecidos e caminham silenciosas desafiando o governo a revelar o que fez a ditadura com aqueles a quem deram a vida, onde estão seus corpos.  Nas favelas brasileiras, senhoras e mães endurecidas pela dor, mas teimando em lutar pela vida, enfrentam os temíveis chefes do tráfico de drogas, pedindo os corpos dos filhos mortos para poder dar-lhes dignas sepulturas. 

Não cuidam apenas de seus filhos, mas também dos alheios.  Não há órfão que não encontre abrigo em seu colo e sua casa.  Não há esforço de ajuda voluntária onde as catástrofes naturais deixam rastro de perda e calamidade que por elas não seja presidido. Não há celebração comunitária em que não estejam elas, organizando o culto, os cantos, a missa, a procissão, a festa. 

Por isso, o Papa repete incansavelmente.  Sem as mulheres o Evangelho não penetrará pelos quatro cantos do continente, de forma alegre e efetiva. E mais do que isso: sem elas o mundo se tornará um espaço sempre mais estéril, violento e necrófilo.  Toda a Igreja, e também a sociedade, sempre tão machistas, têm a aprender com elas a perseverança que se alimenta da esperança que vence a morte.  É mais que hora de reconhecer o imenso serviço que as mulheres têm prestado à Igreja e à sociedade como um todo. Passou da hora de saldar a dívida que a comunidade eclesial e a sociedade civil têm para com elas, tratando-as e reconhecendo-as como companheiras e irmãs, não servas, não subalternas, não subordinadas na missão de transformar o mundo em lugar mais humano para se viver. É mais que hora de aprender com elas a “dançar na corda bamba de sombrinha”, sem medo de se machucar e assumindo alegremente o perigoso, mas fascinante estilo equilibrista de viver.  

* professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio. Maria Clara Bingemer é autora de "Violência e Religião" (Editora PUC-Rio/Edições Loyola), entre outros livros.