Mulheres que Nascem com os Filhos

CAIO BUCKER

O teatro tem umas coisas curiosas. Uma delas é que os projetos te escolhem. Sim, eu acredito nisso, e sempre tive certeza que a arte me escolheu como instrumento de comunicação e difusão de suas criações. Seria como um médium, que manifesta o mundo espiritual neste que habitamos por hora, somando experiências das partes envolvidas. O realizador manifesta as necessidades e transes que a arte precisa proporcionar. Porque ela é necessária. Os projetos vêm, surgem e chegam com força, muitas vezes sem pedir licença, e demonstram uma necessidade latente de falar para o mundo. E quando bate, bate. É aquele lance da química, sabe? “Deu match.” Pelo menos comigo é assim. Durante esses anos como produtor e dezenas de espetáculos realizados, muita coisa boa aconteceu. Alguns nasceram de dentro do meu interior mais profundo, como uma necessidade minha de cuspir sensações e emoções. Outros vieram, mas não se desenvolveram, talvez porque não era a hora deles nascerem. E muitos chegam prontos, bem elaborados e esteticamente definidos. Em alguns casos eu acabo abraçando eles como se fossem meus. Uma espécie de adoção com tanto amor e respeito, que me sinto parte daquele nascimento, e por uma necessidade de crescimento de todos, entro naquela história disposto a realizar.

 

 

Estou vivendo esse momento agora. “Mulheres que Nascem com os Filhos” chegou pra mim assim, pronto, potente, emocionando e me fazendo refletir dia após dia. Tudo começou com a diretora e co-autora do espetáculo, Rita Elmôr, me indicando para produzir. A Samara Felippo me liga e diz que quer me apresentar um projeto, que estava num processo longo de criação, nove meses de gestação e prestes a fazer uma pré estreia. Eu estava em cartaz em São Paulo com um musical, e num sábado chuvoso antes da peça começar, saí à francesa para encontrá-la. Tomamos um vinho no café do teatro. Ela me falava com todo o brilho possível nos olhos, e com tanto amor e certeza do que estava fazendo, que eu recebi aquele convite certo de que ali seria o meu lugar. Além de se desdobrar como atriz, autora e investidora, se descobria ali como uma grande produtora e realizadora, prestes a colocar um espetáculo no mundo com um caminho enorme pela frente. Aliás, ela e a Carolinie Figueiredo, também atriz, autora e realizadora do projeto. As duas juntas é algo lindo de se ver, uma força, um furacão. Samara mandou: “Vamos comigo?” Lembro dessa pergunta enquanto eu tomava o último gole do vinho e ouvia o terceiro sinal do musical que estava prestes a começar. É claro que vamos! Que convite mais lindo. Topei na hora, sem precisar pensar muito, porque quando bate, bate. Sabe aquele lance da arte te escolher e dos projetos nos acharem para colocá-los no mundo? Foi bem assim.

 

O espetáculo é lindo e deliciante, e assim como a vida, tem momentos leves, momentos intensos, emociona e faz rir, vive na dicotomia tragicômica que é o dia a dia, toca em nossas feridas, em nosso passado, presente e futuro. E levanta questionamentos importantes. Trata de forma sensível, bem-humorada e sarcástica o cotidiano e os dilemas do renascimento da mulher com a chegada da maternidade. Quanta coisa interessante que nos ensina! É indicada para mulheres, mães, homens e todos que são filhos, afinal, todos viemos de uma mãe. A ideia inicial era estrear em meados de 2020, mas a pandemia não deixou. Serviu como um amadurecimento de tudo, todas e todos, inclusive da peça, que se apresentava virtualmente entre lives e leituras dramatizadas. A preparação foi rolando, e em Janeiro deste 2022, estreamos no Rio de Janeiro, no Teatro XP. Foi uma temporada incrível, que veio numa crescente e um retorno maravilhoso. A crítica e o público compraram a ideia, e vimos que o caminho estava só começando. No processo criativo, que durou o tempo de uma gestação, as três artistas (Carol, Rita e Samara) levaram para a sala de ensaio suas vivências e memórias, fazendo emergir questões femininas que, muitas vezes, são silenciadas por padrões impostos pela sociedade. E, para reverberar outras vozes para a cena, a peça ainda conta com outros depoimentos de mulheres que tiveram suas vidas transformadas quando se tornaram mães.

A Samara afirma que renasceu com a maternidade, saiu de uma zona de conforto e encontrou sua força e sentido na vida. “Fui atrás da desconstrução para me reconstruir junto com minhas filhas. Nessa peça, quero trazer a transformação que é, em qualquer vida, a

chegada de uma criança. Quero poder ecoar a voz dessas mães, mulheres, e até pais, que buscam diariamente fazer o seu melhor na criação dos filhos. Desde que minha filha, menina negra, questionou a beleza do seu cabelo, minha vida tomou outro rumo. Fui ao encontro de um mundo racista, cruel e covarde em busca de soluções e acolhimento.” Sobre as mudanças na vida ao se tornar mãe, Carolinie, que também é terapeuta, compartilha: “A maternidade mudou completamente minha vida, inclusive no campo profissional. Eu precisei passar por um profundo processo de redefinição de valores após a chegada dos filhos. É preciso sair do automatismo de repetir com os filhos aquilo que recebemos na infância como forma de educar. O mundo mudou, as crianças mudaram e a nossa geração precisa refletir sobre uma parentalidade mais consciente.”

Esse tema no teatro é inédito para mim como realizador, e muito, muito forte. Falar sobre mulheres e questões como maternidade, feminismo, machismo, entre outras coisas, se torna cada vez mais necessário. Produzir uma peça criada e idealizada por mulheres, mais ainda. E a maternidade deve ser vista por outros ângulos não tão romantizados pela sociedade patriarcal e um tanto quanto primitiva. Ao abordar temas como a gravidez, o puerpério, a criação dos filhos, a aceitação do corpo pós-filhos e o encontro de uma nova identidade como mulher, o trabalho busca desconstruir modelos e convidar as mulheres a pensar na maternidade para além dos velhos rótulos. A criação do trabalho também simbolizou um processo de cura para Carol, Rita e Samara, que puderam revisitar suas relações com a maternidade e a ancestralidade. São muitas as mães com quem a peça dialoga: jovens, maduras, solteiras, casadas, dependentes e independentes, presentes e ausentes. Eu tenho a melhor mãe do mundo, tive a melhor avó de todas, e hoje, muito por conta deste espetáculo, tenho mais consciência de todo esse processo, que embora possa ser maravilhoso, não é tão simples assim. Amanhã estreamos em São Paulo, no Teatro Nair Bello (Shopping Frei Caneca), e seguimos a temporada até 05 de Junho, sempre sextas e sábados às 21 horas, e domingos às 19 horas. Eu poderia ser bem clichê e dizer “venham se emocionar e se divertir”. E é verdade. Mas vou dizer: venham refletir, aprender, escutar mulheres, levantar questões, rir e chorar. Tenho certeza que muita coisa vai mudar. Afinal, o teatro existe pra isso. E que bom que este me escolheu.

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