‘Fênix, o voo de Davi’ traz história real de transformação e recomeços

MYRNA SILVEIRA BRANDÃO ( [email protected] )

A incrível trajetória de “Fênix, o voo de Davi” começa em 2 de setembro de 2018, dia em que o Brasil viveu um dos mais tristes episódios de sua história cultural, quando um devastador incêndio atingiu o Museu Nacional / UFRJ no Rio de Janeiro e dizimou grande parte de um acervo histórico e emblemático.

Mas onde muitos só viam destroços, alguns vislumbraram a possibilidade de utilizar a arte para transformar. Este é o tema deste emocionante documentário.

“Fênix, o voo de Davi” – produção original da Globoplay em parceria com a Globo News – segue o bombeiro Davi Lopes que, fazendo parte da tropa que tentava conter o fogo, viu a possibilidade de construir instrumentos musicais com restos de madeira remanescentes do incêndio. Com eles, produziu arte a partir de pedaços de móveis e vigas queimadas na grande tragédia.

A equipe do filme se integrou à jornada de Davi e começou a documentá-la em setembro de 2018 e, desde então, foram confeccionados cinco instrumentos – dois violões, um bandolim, um cavaquinho e um violino – que foram entregues ao Museu Nacional.

O filme mostra todo o processo de busca do material em meio aos destroços, o trabalho de Davi e a finalização dos instrumentos, que ganharam padrinhos famosos como Gilberto Gil, Paulinho da Viola, Nilze Carvalho, Paulinho Moska, Hamilton de Holanda e Felipe Prazeres. Todos dão depoimentos em várias cenas.

Fátima Baptista, chefe de redação da GloboNews, diz que o público pode esperar no filme brasilidade, cultura e relevância jornalística, tudo embalado pelas músicas, a emoção dos artistas que abraçaram o projeto e pelas imagens de grande impacto.

O documentário conquistou seu 13º Prêmio Internacional, o Onyko Films Awards, e este tem um significado a mais por ser um festival de cinema sediado na Ucrânia e realizado por cineastas de Odessa, uma cidade que tem sido duramente castigada pelas tropas russas.

Troféus conquistados anteriormente incluem, entre outros, os prêmios de melhor documentário no Europe Film Festival (Reino Unido); South Film and Arts Academy Festival (Chile); World Film Carnival (Singapura); e Cult Critic Movie Awards e Triloka International Filmfare Awards, ambos na Índia. Neste último ganhou também o prêmio de melhor direção.

Além disso, foi selecionado, entre outros, para o International New York Film Festival (EUA), Toronto Film and Script Awards (Canadá) e Fox International Film Festival (Itália).

O filme foi ainda tema de debate no Cine Fórum, apresentado na atividade denominada Portas Abertas do Congresso RH Rio/2022 da Associação Brasileira de Recursos Humanos do Rio de Janeiro (ABRH-RJ).

Merecedor de tantos reconhecimentos, elogios e prêmios, o ato de Davi é o próprio “renascer das cinzas” e a realização do filme é a eternização desse ato através do cinema.

Em entrevista ao Jornal do Brasil, o diretor Vinícius Dônola e o bombeiro Davi Lopes falaram sobre a motivação para terem feito o filme e o significado da repercussão que o documentário vem tendo em festivais, premiações e envolvimento de renomados músicos e profissionais da área.

 

Jornal do Brasil – Como recebeu a notícia de mais um prêmio para “Fênix, o voo de Davi”, o 13º até agora e novos convites para festivais, o que certamente poderá gerar mais premiações?

Dônola - Vencer a edição de junho do Onyko Films Awards, sediado em Odessa, na Ucrânia, foi especialmente tocante para todos nós. Odessa tem sido castigada pelas tropas russas e, a despeito disso, cineastas e cinéfilos mantêm o festival, criado em 2019. Na impossibilidade de realizar eventos presenciais e de confeccionar os clássicos troféus, eles fizeram o evento on-line, condecorando os vencedores com NFT’s (obras de arte digitais). Que nosso documentário leve ao povo ucraniano a mensagem de que é possível renascer das cinzas, tal qual o fez a Fênix.

 

 

Há muitas motivações que nos levam a fazer alguma coisa. Mas sempre tem aquela mais forte que dá o impulso final para a decisão. Qual foi a principal para eternizar nas telas o feito de Davi?

Dônola - A maior motivação para realizar “Fênix: o voo de Davi” foi, sem dúvida, a certeza da incrível potência de toda essa história. Potência para comover e inspirar; potência para mexer com nossos mais nobres sentimentos; potência que não vi em nenhuma outra história em 32 anos de telejornalismo.

O Davi, 11 dias depois do incêndio no museu, me mandou quatro áudios via aplicativo de celular. Nas mensagens, ele falava da ideia de transformar as madeiras do museu em instrumentos musicais. Poucas horas depois, eu pedi demissão da emissora onde trabalhava, pois sabia que o projeto iria exigir dedicação quase que exclusiva. Meu chefe me chamou de “maluco”. Estou certo de que ele mudou de opinião. Até a ele a potência dessa história deve ter comovido.

 

 

O filme tem tido um grande sucesso com diretores de festivais, crítica e principalmente identificação com espectadores, que é o mais importante e também o mais difícil. Qual o segredo para ter conseguido isso? Após a ideia inicial, houve alguma mudança no roteiro, na filmagem, na forma como atingir o público?

Dônola – Toda a história é revestida de forte simbologia, como um convite a ressignificar nossas próprias cinzas cotidianas. Mas há elementos específicos que tornam a saga de Davi uma jornada comovente para quem assiste, bem como para quem se envolveu com a produção, filmagem e finalização do documentário. Eu citaria três: primeiro, a bondade de Davi. Ele tem uma pureza genuína e encantadora; segundo: a incerteza sobre a reação das madeiras ao trabalho de lutheria. Nem o mais otimista imaginava que fosse possível construir instrumentos com tamanha qualidade; terceiro: o envolvimento apaixonado dos músicos convidados para o projeto, a quem chamamos de “padrinhos”. Eles deram a chancela técnica aos instrumentos, mas não só. Os padrinhos encherem o arco narrativo de emoção, tornando a jornada do “herói” Davi num roteiro clássico de expectativa, embates e glória.

 

 

Jornal do Brasil – O que o levou a visualizar e conseguir transformar um fato tão sombrio em algo tão luminoso?

Davi Lopes - Ressignificar. É um assunto que sempre me encanta. Apaixona e me motiva a buscar uma forma de refazer as coisas, de reviver. Uma forma de “não fim”, porque na vida todos nós estamos sujeitos a passar por momentos bons e ruins que fogem ao nosso controle. Contudo, como reagimos às circunstâncias é uma questão de escolha. Temos que decidir se de uma tragédia vamos extrair ensinamentos ou se apenas vamos lamentar e sucumbir.

Transformar o luto em algo bom parece impossível. No entanto, o processo de ressignificação está relacionado a uma atitude mental que faz com que a gente possa dar novos significados aos acontecimentos da vida a partir do modo como vemos e percebemos o mundo, uma forma diferente de pensar a realidade, imaginar como gostaríamos de ver as coisas, seja como um tipo de homenagem através de uma nova forma de uso, algo que mantenha viva a história na nossa lembrança e nos faça seguir em frente como alguém que sente saudades, mas que conseguiu se reerguer, recomeçar e reconstruir.

Por mais difícil que a realidade pareça, sempre há esperança e sempre haverá uma alternativa.

 

 

O documentário tem tido uma grande repercussão, premiações e convites para muitos festivais. Quando você teve a ideia de criar os instrumentos musicais e quando ela foi adaptada para as telas do cinema, você tinha essa expectativa para o filme?

Davi Lopes – A ideia surgiu em 1997 quando, já músico e amante das artes com madeira, tive a oportunidade de fazer parte do Corpo de Bombeiros do Estado do Rio de Janeiro e compor as fileiras de combate a incêndio e salvamento da corporação.

Em Niterói, quando entrei pela primeira vez em um grande incêndio, tive a real consciência da destruição que um incêndio produz, do caos que ele deixa e da tristeza que fica com a perda súbita de bens e até de vidas.

Mas também percebi que muitas madeiras de portas, janelas, vigas, móveis e objetos, até colunas das casas e construções do Rio Antigo não eram totalmente destruídas e poderiam ser reaproveitadas e recicladas. Na minha visão, resignificado.

Então juntei a minha paixão pela música, pela arte com madeira e pelo violão, e surgiu um bombeiro músico luthier, construindo instrumentos com madeiras de incêndios e demolições do Rio Antigo.

Claro que essa ideia pareceu maluca, trabalhosa e nem um pouco lucrativa aos olhos de muitos, mas eu só enxergava esperança e possibilidades.

Eu e um reporter chamado Vinícius Dônola, que acreditou nesse trabalho e fez uma matéria sobre o assunto em outubro de 2016, também convidando o cantor e compositor Paulinho Moska para analisar a qualidade dos instrumentos feitos com essas madeiras de incêndios.

Bem, a análise foi positiva e gerou uma excelente matéria, além de uma amizade que une o desejo de levar uma mensagem de esperança e ressignificação, usando a arte, a música, a poesia e a realidade.

Até que no dia 2 de setembro de 2018, o incêndio que ocorreu no Museu Nacional trouxe para o Rio de Janeiro e para o Brasil, um sentimento de tristeza e derrota, um caos se instalou naquele lugar, realmente o fim para muitas coisas. Os nossos semblantes caíram e o choro tomou conta do nosso ser, quase não conseguiamos pensar...realmente o fim.

O luto começou e eu estava nele. Mas com uma pergunta que sempre faço diante da tragédia que se apresenta nas nossas vidas sem avisar; “O que posso fazer para ajudar a reconstruir? “O que tenho para ajudar a ressignificar?”

No 11º dia após o incêndio e eu, indo todos os dias lá no museu, levando um violão feito com madeiras de incêndios para servir de exemplo caso alguém parasse para ouvir essa ideia maluca, lembrei do Vinícius Dônola e do Paulinho Moska, que já tinham acreditado nessa ideia e enviei audios e mensagens perguntando: “Vocês podem me ajudar nessa ideia maluca?”

Então surgiu a Fênix. O grupo que tornou possível a ideia de reconstruir, de reerguer... de ressignificar.

Nós reagimos e unimos nossos talentos para reerguer o Museu Nacional, unindo-se a nós grandes nomes da música brasileira, todos no mesmo propósito de mostrar ao mundo que é possível escrever uma nova história, que é possível ter “Tudo novo de novo”.

Temos então um maravilhoso documentário dessa história tão linda e emocionante que é “Fênix, o voo de Davi”.

Mas realmente não criei nenhuma expectativa e nem pensava em resultados posteriores, mas sabia que estava contribuindo com algo muito importante.

 

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