CINEMA

Torturas e conflitos ideológicos nos cinemas

Depois de passar pelos principais festivais do Brasil, o longa-metragem 'O pastor e o guerrilheiro', de José Eduardo Belmonte, estreia quinta-feira

Por MYRNA SILVEIRA BRANDÃO
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Publicado em 09/04/2023 às 16:34

Alterado em 09/04/2023 às 16:39

José Eduardo Belmonte Bob Wolfenson

Inspirado em uma história real e ambientado na década de 1970, o filme segue um guerrilheiro comunista que se encontra na mesma cela que um cristão evangélico, preso por engano. Em meio a torturas e conflitos ideológicos, eles se ajudam e marcam um encontro para o réveillon do ano 2000.

Nos últimos dias do milênio, Juliana, ativista estudantil e filha ilegítima de um coronel que acabara de se suicidar, é surpreendida com uma herança deixada para ela.

Por meio de um livro encontrado na casa do coronel, ela descobrirá que seu pai foi o torturador dos dois presos, e que o encontro marcado não acontecerá como previsto.

O elenco de peso conta com Johnny Massaro, Julia Dalavia, César Mello, Túlio Starling, Ana Hartmann, William Costa, Antônio Grassi, Buda Lira, Gabriela Corrêa e Ricardo Gelli, e tem ainda a presença do saudoso Sérgio Mamberti (1939-2021), em seu último trabalho.

“O pastor e o guerrilheiro” já foi selecionado para vários festivais: entre outros, Gramado, Mostra de São Paulo, Festival do Rio, New York Latino Film, San Diego Latino Film, e a 55º edição do Festival de Brasília, onde ganhou o prêmio de melhor filme, concedido pela Câmara Legislativa do Distrito Federal.

Em entrevista por e-mail ao JORNAL DO BRASIL, Belmonte falou sobre o filme, e revelou também como imagina o cinema do futuro com todas as mudanças que estão ocorrendo, principalmente as ligadas à tecnologia digital que certamente provocará uma nova forma de produção e difusão.

 


Qual a principal motivação que o levou a realizar “O pastor e o guerrilheiro”?

Acho que são três questões aqui: a primeira, que é sempre importante falar sobre as ditaduras que o Brasil já teve; o Brasil, no século XX, viveu muito mais tempo sob a ditadura que sob a democracia. Isso pra mim configura o quão a cultura autoritária está impregnada no nosso cotidiano, em todos os segmentos da sociedade, em todos os lugares. E acho que os meus últimos filmes acabaram que falaram muito sobre isso. Sobre o quão a cultura autoritária está impregnada na vida da sociedade brasileira. E como a gente consegue conviver e sobreviver a essa cultura. Eu acho também que o que me motivou a fazer esse filme foi a história de dois personagens que são divergentes, contrários, mas que de alguma forma acham um ponto de contato, precisam encontrar um ponto de contato. Acho que isso me motivou lá atrás, muito antes dessa fragmentação que teve na sociedade brasileira, cada vez pior nesses últimos anos. Esse projeto é de 2012. Então, isso sempre me interessou. Esse caminho do diálogo, do bom debate, do debate consciente, elegante, civilizado. Que constrói o outro, que você tem um interesse genuíno no outro. Isso pra mim foi uma grande motivação. Tem uma coisa também que é uma realidade que eu vivi, me identifiquei muito quando me contaram a história, que é esse momento pós-ditadura, as pessoas vivendo depois do processo da ditadura, vivendo as consequências disso, as consequências emocionais, sociais disso. Isso também é um aspecto que eu acho que a gente precisa falar, não só do período, mas sobre as consequências do que ele deixa de ruim pras pessoas e pra sociedade.

 


A ideia de realizar o filme tem origem de uma forma diferente de outros trabalhos seus, mas sua assinatura está visivelmente presente. Foi difícil manter essa sintonia?

Eu fico feliz de achar isso porque é uma busca mesmo, uma busca que eu comecei nesses últimos 10 anos principalmente, quando eu era produtor e roteirista dos projetos, né? Nos últimos 10 anos, os filmes vieram através de produtor, e isso era uma ideia, de expandir o meu universo também; e isso por entender que o processo de produção de um filme, ele é sempre dialético, é um pouco o que é o tema do filme, um pouco ligado à primeira resposta, de você tentar se encontrar pelo outro; eu uso essa experiência, pra mim, fazer cinema também e tem essa experiência de vida, né? Então, isso é bacana, mas eu acho também que quando eu digo sim pra um projeto, eu vejo a oportunidade de ter alguns temas que me são caros, personagens que acreditam na utopia, que tentam se conectar, que tentam sair do isolamento através do outro, através do que é distante deles mesmos pra se acharem, essa jornada um pouco fora de si pra se encontrar é um pouco uma coisa recorrente nos meus filmes. Interessante porque fui descobrindo lugares que talvez eu não fosse, e sendo dialético, mas também sem deixar minhas experiências e convicções. As coisas funcionam melhores como foram nesse caso quando você tem produtores muito permeáveis a isso. Nesse caso foram duas felicidades: foi o fim de um processo de amadurecimento, esse processo começou uma década atrás, é o fim de um ciclo de alguma forma, e esse fim de ciclo teve um produtor muito permeável a essa dialética, a essa contaminação do diretor, que também permite que o elenco também colabore. O filme pode até ter um dono, mas ter vários criadores, eu acho que isso que é a essência do cinema; às vezes, a gente colocou muito o processo de criação numa pessoa só, que é o diretor, mas eu vejo que um processo de construção de um filme passa por isso, são vários criadores.

 


O filme tem várias conexões, épocas, abordagens e você consegue estabelecer diálogos com todas, mantendo sempre o equilíbrio na narrativa... Fale um pouco mais sobre isso.

Num certo momento, quando estava mais perto da filmagem, mais perto de ter um roteiro pronto - o processo começou em 2012 -, já em 2017 quando a gente já estava focando pra filmar, eu tive uma conversa com o Nilson, que é o produtor, e com o Caetano, que é o produtor executivo, e falei que era muito importante que o filme falasse sobre pessoas que são divergentes, mas que entram em contato, de universos que de alguma forma são antagônicos na história e que por circunstâncias históricas também ficaram um pouco antagônicos, né, como a esquerda e o movimento evangélico – só que o movimento evangélico a gente fala de forma geral, porque ele é muito amplo, ele é muito cheio de ramificações, ele é muito complexo, mas no senso comum ficou com essa imagem basicamente de conservador. O mais importante era que o filme falasse para sociedade brasileira. E o fato de que a gente tem um posicionamento político não quer dizer que a gente não tente buscar o equilíbrio; então, isso foi a base também pra gente, e aí, quando entrou a roteirista, a Josefina, veio um pouco o movimento de entender as razões e motivações de cada um. Isso não quer dizer que você está concordando, mas que você quer entender. Isso é um pouco a função do contador de histórias, né, por isso que ele é tão importante pra sociedade, porque ele investiga de alguma forma e ajuda a gente a entender um panorama, um panorama complexo que ajuda a apontar caminhos de solução, entendimento pras questões.

Enfim, o que eu quis dizer também é que a gente queria que esse filme não fosse só pra uma bolha, né, que ele tentasse atravessar um pouco, tentasse que o mesmo diálogo que está dentro do filme tivesse um pouco na linguagem, no modus operandi da construção do filme. Então isso foi uma coisa que norteou a gente. Isso foi uma prova, porque quando a gente exibiu em vários grupos separados, em algumas igrejas evangélicas, pra jovens estudantes, pra vários universos diferentes, o filme dialogou muito bem; claro, no geral, ele dialoga muito bem, acho isso bem interessante.

 

 

Mudando um pouco o foco, como você vê o caminho do cinema e principalmente do cinema brasileiro com todas essas mudanças, tecnologia numa velocidade absurda, o digital, enfim; seria mais um ciclo entre os muitos que tivemos ou realmente teremos uma nova forma de produção, difusão ...?

Eu acho que cinema é uma arte, talvez seja a arte mais vinculada à tecnologia; ele só é possível por causa da tecnologia, o dia que tiver uma pane elétrica acaba o cinema, ele tá totalmente conectado a isso. E ultimamente a tecnologia vai dando saltos muito grandes, vai mudando muito rápido, com consequências tanto no modo de produção quanto no modo econômico, na sociedade, as ramificações dessas mudanças são muito grandes. Eu, quando comecei a ouvir um pouco sobre o fim da película, o fim do cinema químico e mecânico pro começo do cinema eletrônico, que virou o cinema digital, foi um pouco tenso, a sensação é meio ambígua, as mudanças são sempre boas, mas também elas causam um pouco de ansiedade do que vai vir depois delas. Acabou que o cinema sobreviveu a essa mudança, foi interessante, teve perdas e ganhos, como todas as mudanças. A questão pra mim mais delicada é sobre o espaço da sala de cinema. Acho que o cinema vai continuar sempre existindo, é difícil fazer um exercício de futurologia, porque exatamente a tecnologia muda, a gente consegue jamais prever. A questão hoje é se pensar como o espaço da sala de cinema vai sobreviver a essas muitas mudanças, um monte de fragmentação, hoje as pessoas veem o filme de várias formas, antigamente não era assim, você tem público hoje que você tem que dividir, vê muito mais fragmentadamente, o espaço da sala cinema hoje não é mais como era para as outras gerações, era mais especial, mais como um ponto de encontro; hoje as coisas se dão de formas diferentes. O que também se liga a muitas outras questões: hoje todo mundo tem uma câmera, quando eu comecei, ter uma câmera era uma coisa muito rara; hoje todo mundo tem uma câmera, todo mundo produz audiovisual. Então, essa expansão, essas várias formas de ver, talvez leve o cinema para outro lugar, a linguagem para outro lugar. Essa adaptação que é difícil prever; e difícil são os passos que vão vir daí também.

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