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Desde pequena me acostumei a ver o mundo com os olhos da poesia. É como uma lente, é como se por ela eu enxergasse melhor. Tal qual uma linguagem, se considerarmos que cada poeta é um tradutor. A tarefa consiste em transformar o que testemunhamos em tecido feito de linhas compostas por palavras. Eis o nosso tear. E aí temos um pôr de sol, a bola incandescente caindo na beira do fim da terra, que é onde a vista acaba, e os poetas, os escritores que se virem para traduzir em verbo tamanha materialidade. Gosto do ofício e me chateia que não possa me entregar assim sempre ao seu viés, porque outros temas me convocam: o presidente envergonhando a gente em Davos, o crime de Marielle apontando para a ligação promíscua de milícias e parlamentares, os inexplicáveis milhões de Queiroz, a decepção dos eleitores do atual presidente, a liberação do porte de armas, os ataques às grandes conquistas dos direitos humanos, o feminicídio galopante, as vítimas de abuso, o machismo que atinge profundamente homens ditos modernos, e mulheres também, tudo isso vem bater em minha porta na alta madrugada, pedindo ensaio, artigo, opinião,consideração. Mas estou em Itaúnas, o que posso fazer? Sou um grão de areia misturado ao amarelo ocre das dunas. Há um rio que nasceu muito antes de mim correndo em volta da vila que me ampara. Há o mar que me exige pernas firmes para que possa alcançá-lo, para que eu esteja à altura de sua bravura. Estou aqui cercada de comunidades quilombolas, esperando o barco chegar com flores, pretos velhos senhores, crianças, senhoras, com chapéus coloridos enfeitados com rosas de papel crepon, tudo isso meu coração aguarda como se eu fosse Rosinha, a mulher do pescador, esperando o barco do amor apontar na praia. Assim espero Ticumbi chegando, com seus pandeiros, rompendo a aurora, tendo atravessado a madrugada cantando os afro mantras a noite inteira sem parar. Sou de São Benedito e no dia de São Sebastião tudo é tão misturado aqui que não se pode duvidar. Fiquei reparando na saias rendadas meio cor de rosa dos homens dançando o folclore, pensando em quanto equívoco há em quem pensa o feminino e o masculino no resumo das cores. Desculpem, meus amores, mas é que “estou no colo da mãe natureza e ela toma conta da minha cabeça”. Aqui perco a pressa, não tenho que pegar uber, metrô, táxi, horário de reunião, do post, do evento. Aqui no reino de Itaúnas percebemos que o dia rende. Sem a urgência, observamos como a cidade nos adoece e como a gente entende quanta besteira fazemos em nome dessa afobação. Penso isso e estou indo ver a aurora da lua quando a noite chegar depois do crepúsculo e quero poder só escrever isso. Dar testemunho do fato de ser criatura sob este luar:

Era um lusco fusco de matar.

Não sei dizer agora como explicar.

Era luz de sonho, minha máquina não conseguia fotografar.

Deixou-se então na conta das palavras tal incumbência.Pois bem,

a luz é cor que não se encontra em lápis ou tinta pronta.

Nem adianta procurar.

Deve ser por isso que se inventa.

Por desaforo de não poder copiar.

Não se encontra na caixa de lápis de cor. Não é sépia, é futurista.

Tampouco é azul, fria.

Não. É sempre algo que eu ainda não vira.

Milenar, me chama o espetáculo maravilhoso, me assombra este antigo sucesso de bilheteria!

Tanta luz que alguma voz gritou: Uai, as meninas, amanheceu?

“Vede, é dia já.” Ouvi a fala de O marinheiro de Fernando Pessoa dentro de minha cabeça.

Coisa doida. Minha sombra caminhando nas areias mas eu própria não me via.

A lua cheia, que tinha passado a noite anterior sendo de fogo,

cintilava no comando da orquestra dos sapos e grilos,

e ao som mudo rastejante dos invisíveis répteis.

O domínio das corujas reluz na impressionista paisagem desértica, ornada de uma vegetação vistosa, delicada.

Feito uma tiara na cabeça de dona Duna. Marcinha afirma que na noite da lua vermelha estavam no céu, vizinhos, Júpiter e Vênus rebrilhando como se fossem variações de lua também.

Contou isso e os olhos se transmutaram nos planetas e eu tive medo dela.

Aconteceu sim, Índia Kika confirmou tudo.

Explicando que a luz não era analfabeta e escrevia com imagens. Estavam juntas debaixo do mesmo céu.

Eu estava ali e não era sonho.

Eram nove mulheres de areia e eu era uma delas.

Vou dizer a verdade: nem toda metáfora mente.

Dava pra pegar lua e estrela com a mão. Todo mundo.

Quem quisesse.

Estou calma. Acho que você precisa ver o luar.

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linguagem | luar | poesia