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Tesouro do mundo

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Era uma terça, 2 de fevereiro, era meu aniversário. Aos 25 anos, tinha ganhado no penúltimo dia de janeiro o maior presente de toda minha vida. O presente era uma criaturinha. De verdade. E era minha. Coisa mais querida. Eu e o pai, recém-casados e apaixonados, fomos de férias por 15 dias, no interior capixaba, quando percebi que havia esquecido os anticoncepcionais. E se a gente fizesse um filho agora, que tal? A hora é essa e ele nascerá aquariano como nós! Sugeriu, amoroso, o pai. Feito. Nove meses depois estávamos com a linda prenda ao colo, ao peito e com a responsabilidade imensa depositada sobre jovens pais: criar uma pessoa do novo tempo. Não do tempo que estávamos vivendo, mas do que estávamos construindo. Era o começo dos anos 80, muitas lutas que nem tinham nome já estavam em nossa mesa: contra a homofobia, o racismo; pelo feminismo, pela compreensão, pela inclusão, pela liberdade. Era ela a nossa principal bandeira. Foi por ela a “bagunça”, a inquietude na universidade. Foi ela a madrinha de todas as ousadias que a gente chamava de vanguarda. Conheci o pai num ensaio de teatro e nunca mais nossas vidas foram as mesmas. Olhando hoje da janela dos dias, penso em como a luta pelo êxito profissional nessa vibe capitalista que prioriza a disputa, a vantagem em detrimento do convívio mais amoroso entre os seres, faz com que muita gente não identifique o filho como a grande fortuna. Me espantei com vários amigos que, por exemplo, apesar de terem fumado maconha na universidade, não compreenderam quando seus filhos o fizeram. Ou seja, encaretaram. Fizeram um gol contra, dando um tiro no próprio pé. Essa crônica que homenageia o meu filho tão querido, Juliano Gomes, esse rapaz respeitado que faz aniversário nesse fim de janeiro, quer mais do que isso. Pretende fazer um bolo escrito cujo recheio é constituído dos sonhos que cada um de nós coloca nos ingredientes da educação que oferecemos aos nossos frutos. Claro que há discussões, discordâncias. Não estou falando de gente perfeita, nem de família margarina.

É bom um olhar consequente sobre o que há para ser ensinado aos nossos filhos que eles possam levar pela vida e, a partir daquilo, irem criando o seu conjunto de valores com consciência coletiva, querendo o bem e a justiça para todos. Toda hora a gente está educando quando são pequenos: no jeito como os tratamos, como tratamos os empregados, os vizinhos, os comerciantes, os garçons, as pessoas que cozinham para nós dentro e fora de casa. O público mirim está testemunhando tudo. Nem sempre os espetáculos que os pais exibem dentro de casa seriam aprovados pelos critérios da censura para aquela faixa etária. Um dia estava na praia e uma moça bonita me pergunta se tenho isqueiro. Respondi e fui logo perguntando, por que você está triste? Meu ex-marido tem a chave, entrou em casa, e eu, com a minha filha de três anos. Nos acordou de arma na mão dizendo que se eu arranjar outro ele acaba comigo. Me deu dois tapas no rosto. Vim aqui chorar. E chorou no meu ombro. Abracei-a. Sua filha está com quem agora? Com ele. Você está maluca? A menina vai pensar: o cara agrediu minha mãe, e ela me deixou sozinha aqui com o monstro? Pensa nisso, você não tem medo? Não, ele é ótimo pai. Ela está acostumada a ver a arma e chama de pow pow do papai. Aí fui eu quem começou a chorar. Não, minha querida, ele não é ótimo pai. Ele te bate e ameaça com uma arma diante da própria filha. Isso dilacera meu coração. Você está sofrendo agressão e abuso, Maria da Penha nele!

O espetáculo adulto é muito testemunhado pelas crianças da casa. Até as que ainda não falam entendem de astral, energia e climas. Sou muito amiga do pai de meu filho, mesmo depois de separados. Sermos uma família foi muito importante para o crescimento daquele pequeno ser que nossa utopia ajudou a criar e conduzir até a vida adulta. Passa o tempo. Vejo-o melhorando nossa luta, adiantando a cena com a pegada do bastão da esperança revolucionária reverberando-a de modo mais poderoso ainda em sua era. Sou dela também aprendiz. Já ouvi falar em muita qualidade de ouro mas não há tesouro maior do que esse: um filho que ame todo o planeta e sua gente. Lembro que eu não queria nem dormir diante daquela estonteante beleza de uma vida em forma de neném ainda, o broto do homem. O fruto ressignifica toda a ancestralidade da árvore. Renova-a. Era fortuna. Era o mundo nas mãos.