Entre realidade e ficção

Por Álvaro Caldas

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ENTRE REALIDADE E FICÇÃO

As mulheres podem dar uma surra neles

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Publicado em 07/07/2022 às 13:07

Alterado em 09/07/2022 às 13:47

Álvaro Caldas JB

Elas são maioria na população e entre o eleitorado. Somam mais de 53%. A força de seu voto será decisiva para decidir a eleição de outubro. São muitas as razões que cada uma delas tem para não votar em Bolsonaro e sua lista de detratores e aliados. Eles desqualificam as mulheres, fazem a apologia do estupro, comportam-se de uma maneira vil e degenerada em relação ao corpo feminino e aos seus direitos.

Diariamente, elas são desrespeitadas, xingadas, agredidas, assediadas e humilhadas por esses tipos indecorosos de dentro e de fora do governo. Sujeitas a uma tradição machista, responsável por uma das mais altas taxas de feminicídios do mundo. Com o doloroso aprendizado de sua vivência, são portadoras de ofensas e agressões de seus chefes e são livres para fazer o seu protesto.

Não importam as distinções. Seja porque são pobres ou remediadas, negras ou brancas; jovens, balzaquianas ou maduras; indígenas ou imigrantes; viúvas, casadas, solteiras ou separadas; mães e avós, bailarinas ou manicures; trans, hetero ou homo; desempregadas ou funcionárias da Caixa Econômica. Todas estão diante da oportunidade de se engajar numa ciranda para dar o troco com uma surra de votos neles. Dirigir-se a urna eletrônica e usar o título como uma arma cívica contra os déspotas assediadores.

Maioria da população, as brasileiras podem transformar seu repúdio pessoal num ato coletivo, varrendo do cenário público o inominável e sua corja de corruptos e detratores. Ao mesmo tempo, solidarizar-se com a menina de 11 anos vítima de um estupro e impedida de abortar por uma juíza, refém da cultura bolsonarista. E confortar a atriz Klara Castanho, submetida a uma sucessão de violências com sua criminosa exposição pública.

Simone de Beauvoir pôs a reflexão sobre o corpo no centro do feminismo. Setenta anos depois de lançado, o Segundo Sexo continua válido, expõe a raiz das desigualdades entre o homem e a mulher. Aqui abro uma janela para respirar com um livro de exaltação. Seu titulo é simplesmente Uma mulher, seu autor um escritor húngaro. São 97 curtas e provocantes digressões, noventa e sete poemas de amor em prosa, que começam sempre da mesma forma, “Há uma mulher”.

Assim: “Há uma mulher. Ela me ama. Gosta de mim cada vez menos e me deseja cada vez mais. Não fomos apresentados. Está sentada à minha frente no restaurante. Na maior parte do tempo prefere dançar balé”, escreve ele na abertura da primeira história. A seguir, brinca com o leitor e muda o tom: “Há uma mulher, ela me odeia, me expulsa o tempo todo. Me liquida. Me joga fora feito um limão espremido. Conduz a coisa com muita inteligência. É coerente e usa argumentos bem fundamentados para terminar comigo”.

Mais para o final, na de número 87, ele escreve, como numa rendição: “Há uma mulher. Como se fosse meu anjo da guarda. Que Deus o abençoe. Sopra, enquanto bate as asas e morde o meu rosto com delicadeza. Uma vez que eu não posso mais (cuidar) ela foge. Ri muito, exibe as gengivas largas e os dentes.”

Peter Esterházy é um escritor húngaro, refinado artesão das palavras, de uma família aristocrática de músicos. Nascido em Budapeste em 1950, tem mais de trinta livros publicados. Este, das mulheres que amam e odeiam, saiu no Brasil pela Cosac Naify. Sua presença nesta página é uma homenagem a todas elas, repetidamente aviltadas.

Como deixou gravado uma delas, funcionária do gabinete de Pedro Guimarães, ex-presidente da Caixa, em depoimento ao Ministério Público Federal: “Eu resolvi falar porque fui intimada pelo Ministério Público e me senti confortada a partir do momento que eles me falaram que outras mulheres já haviam feito depoimento, que eu não era a única. Se fosse só eu, não gravava, não filmava, né? Ele tira o celular da gente. Ameaça o tempo todo. Ele grita. Aí vem a questão do assédio moral.”

“Quem trabalha com ele no dia a dia isso é normal. Ele grita com a gente. Ele humilha a gente. Ele ameaça tirar função, sabe. Infelizmente, quando a gente se vê vítima, então esse sentimento de querer que isso pare, que isso cesse, que isso não aconteça com outras pessoas. A Justiça é mais nesse sentido, de que se pare.”

Guimarães reagiu esbravejando que isso era uma “filhadaputagem.“ Em outros depoimentos, funcionárias o acusaram, a ele e assessores, de cometer abusos e assédio sexual em série. Relataram toques indesejados, abordagens impróprias, convites indecorosos para sauna e piscina em viagens.

Dois terços dos processos por assédio sexual na administração federal terminam sem qualquer penalidade, segundo levantamento realizado pela Controladoria Geral da União, divulgado pela Folha de S. Paulo. De 2008 ate junho de 2022, 905 processos correcionais foram abertos, e 633 concluídos. Destes, 432 chegaram ao fim sem punição.

Os brasileiros de todos os rincões contam com o voto feminino para livrar o país do pesadelo desta boçalidade criminosa.

* Jornalista e escritor

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