A voz rouca do maestro Lula dá o tom da sinfonia
Num cenário impensável há cinco meses, Lula avança consistentemente rumo a uma vitória no primeiro turno, em 2 de outubro. Sua marcha é firme e determinada, tanto quanto sua irradiante presença no comando da orquestra. Dá um passo à frente de cada vez, a cada nova pesquisa e adesão de novos aliados, sem que precise recuar dois, como na cartilha leninista. Até domingo, o angustiante nó da incerteza e da agonia que paira sobre o país será desfeito.
Demorou mas aqui chegamos, em pleno inicio da sagração da primavera, diante de uma eleição que se tornou crucial para o futuro de um país que pretende viver em liberdade e de forma civilizada. Numa democracia, com o governo de um lado e oposição de outro, sem ódios e mentiras, sem facadas, traições e aberrações familiares. Depois de passar por uma verdadeira saga, repleta de incidentes, difícil até de ser relatada objetivamente.
Como em todo processo histórico em andamento, vários caminhos e diferentes versões se cruzam. Intenções e desejos, esperanças e desalentos permeiam e conturbam a visão da realidade histórica. No palco, os atores entram em cena para o terceiro ato, que vai consagrar o retorno do ex-presidiario Lula da Silva à cadeira presidencial. Ele já a ocupou duas vezes e agora, qual um lúcido sobrevivente de sua longa peregrinação, colocou-se a frente da corrida eleitoral para a presidência.
Diante de um fascismo redivivo, que se vangloriava de invadir nossas casas, nossas escolas, nossos botequins e nossos costumes, ele construiu um projeto de esperança à base de debates e discussões. Com suas artes de liderança e maestro, que sabe ouvir todos os instrumentos. Trabalhando passo a passo, conseguiu aglutinar uma imponderável frente ampla, juntando personagens díspares, pessoas que jamais haviam pensado em apoiá-lo ou conviver entre si.
De Alkmin ao juiz conservador Celso de Melo, que presidiu o STF. De ex-candidatos a presidência como Marina Silva, Henrique Meirelles e Cristovam Buarque a economistas liberais tais que André Lara Resende, De sindicalistas, artistas e escritores à velha guarda da Portela, catadores de papel e entregadores de comida, compondo uma orquestra múltipla e variada, com violinistas e baixistas negros, indígenas e gays.
O “cara”, assim chamado por Obama, veio costurando apoios de todos os lados. Despertou uma chama política em Xuxa, atraiu as cantoras Anitta e Ludmilla. O juiz Joaquim Barbosa, ex-presidente do STF, algoz do PT no mensalão, sintetizou assim o clamor de tanta indignação: “Bolsonaro não está a altura, não tem dignidade para o cargo. Nas grandes democracias ocidentais, é visto como um homem abjeto e desprezível”
O maestro Lula da Silva, ex-pau de arara e metalúrgico, faz 77 anos no dia 27 de outubro, já consagrado presidente, se eleito no primeiro turno. Seu trabalho estará começando. Montar e liderar um governo de frente tão ampla e diversificada exigirá suor, abnegação e talento. Vencer Bolsonaro nas urnas foi o primeiro grande desafio. O segundo será derrotar o bolsonarismo e governar, certamente já com a grande mídia fazendo oposição.
Venho de uma geração que passou por guerras e enfrentou ditaduras, acostumada aos desconfortos da vida. Quando nasci, o Exército de Hitler estava entrando em Varsóvia. Peguei o golpe de 64 vendo os tanques nas ruas. Prisão e tortura fizeram parte de nossa viagem. Quando as coisas pareciam ter se acalmado, nos vimos novamente diante das fuças do fascismo bolsonariano.
Os caminhos da história são tortuosos. Na formação política desta geração passou de mão em mão um exemplar dos Dez dias que abalaram o mundo, do repórter norteamericano John Reed, que narra ao vivo os acontecimentos da revolução russa de 1917. Livro fascinante que inaugurou a grande reportagem de estilo literário no jornalismo moderno. De Petrogrado, Reed acompanhou a marcha da revolução ao lado de Lênin e Trotsky. A revolução venceu, o país soviético acabou antes que o século terminasse.
Se considerarmos que tudo o que é sólido desmancha no ar, estamos vivendo mais um momento destes, de uma certa magnitude, com quebra de conceitos, tumultos e rupturas. No último grande ato da campanha de Lula, no Anhembi, denominado Brasil Esperança, o advogado, escritor e combatente antirracista, Silvio de Almeida, proclamou que no primeiro turno da eleição não votaremos somente por nós mesmos. Mas pela memória de Zumbi dos Palmares, Luis Gama, Dandara, Abdias do Nascimento, Marielle Franco, Anderson Nascimento, Darcy Ribeiro.
“Votaremos também pela memória dos que foram exilados, torturados e mortos pela ditadura. Pelos que pereceram pela fome, pela violência no campo e na cidade, pelos que perderam a liberdade pelo sistema de Justiça. E pelos que perderam a vida pela covid-19 devido à negligência.” Mereceu ser aplaudido de pé. O preto Silvio de Almeida é meu candidato a ministro da Justiça de Lula. Axé!
*Jornalista e escritor