O Nobel vai para Annie Ernaux e sua literatura de combate

ÁLVARO CALDAS ( [email protected] )

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Não é que sua escrita tenha a marca do engajamento. O engajamento é dela, Annie Ernaux, a escritora francesa de 82 anos que acaba de ganhar o Prêmio Nobel de Literatura de 2022. Seus livros mesclam memórias com contexto social, nos quais repassa momentos traumáticos de sua trajetória pessoal associada à história da França do pós-guerra até o começo dos anos 2000. Uma obra que não se enquadra no rótulo de autoficcão, transcende seu lugar e atinge a universalidade.

Seu caminho para se tornar escritora foi longo e árduo. No anúncio do prêmio, a Academia sueca ressaltou que “em sua escrita, Ernaux, consistentemente e por ângulos diferentes, examina uma vida marcada por fortes desigualdades em relação a gênero, linguagem e classe.” Sem fugir de si, escreve na terceira pessoa uma obra que ultrapassa seu próprio tempo. A francesa será o pincipal destaque da próxima edição da Festa Literária Internacional de Paraty, em novembro.

Annie Ernaux pertence a uma linhagem de escritoras talentosas e aderidas ao seu tempo. Não escrevem ficção pura. Não inventam um outro mundo ficciomal ao escrever, mas narram com emoção e grande maestria histórias de seu tempo, nas quais se envolveram, numa linguagem de alta qualidade literária.

Entre elas, uma outra francesa, Marguerite Duras, nascida no Vietnan, considerada uma das principais vozes femininas da literatura do século XX na Europa. Roteirista e escritora, lutou na Resistência francesa e deixou obras como O Amante e A dor, que perpassam um mundo de conflitos e engajamentos, como os vividos por Ernaux. Pontuados por uma audaciosa coragem de narrar o estranhamento de sua memória pessoal,

Annie Ernaux tornou-se 17ª mulher a ganhar o prêmio. Antes dela, a Academia sueca premiou, em 2018, a romancista, ensaísta e poeta polonesa Olga Tokarczuk, nascida em 1962, que faz em seus livros o cruzamento enciclopédico de diversas fronteiras. Em Sobre os ossos dos mortos, Editora Todavia, a partir da vida reclusa de uma professora aposentada, aborda temas como a loucura, injustiça e direitos dos animais, partindo da investigação de um crime convencional que se transforma em suspense.

São escritoras de seu tempo, que retratam acontecimentos transformadores que as atingiram pessoalmente, contaminando ao mesmo tempo toda uma época. O reconhecimento pelo Nobel de sua literatura se deve à coragem com que as autoras se colocam diante da escrita, coragem para narrar o indizível e assumir a vergonha de situações que viveram e foram humilhadas.

Uma das mais notáveis delas é a bielorussa Svetlana Aleksiévitch, Nobel de 2015. Com A guerra não tem rosto de mulher e O fim do homem soviético, ambos da Companhia das Letras, Svetlana dá seu testemunho da guerra de extermínio e destruição na União Soviética, Com seus livros, criou um novo gênero literário, o das histórias orais, menos preocupada com o registro dos acontecimentos do que com o sentimento dos envolvidos que entrevistou.

Com Annie Ernaux, são memórias de tempos passados, muitas vezes escritas décadas depois, como é o caso de O acontecimento, que narra o aborto ilegal que realizou nos anos 70, quando tinha 23 anos, publicado este ano no Brasil. Em suas motivações, ela escreve que queria mergulhar mais uma vez naquele episódio de sua vida, saber o que se encontrava ali.

Em O lugar, seu quarto livro, faz um acerto de contas com o pai, incorporando à escrita uma reflexão rara na literatura. O rompimento com lugares e valores, sobretudo com os afetos mais essenciais. A Vergonha rememora momento traumático ocorrido quando tinha 12 amos, quando seu pai, num acesso de fúria, tenta matar sua mãe num domingo de manhã.

Num relato objetivo mas carregado de emoção, Annie narra os desconfortos que sentiu numa relação que viveu com um homem trinta anos mais novo em O Jovem. A inveja que sentia em relação à beleza e juventude de seu amante, em contraponto à manipulação que exerceu como escritora reconhecida e madura.

“Muitas vezes fiz amor para me obrigar a escrever. Queria encontrar na sensação de cansaço e desamparo de depois, motivos para não esperar mais nada da vida. Nutria a esperança de que não havia orgasmo mais intenso do que a escrita de um livro.” Relatos fortes e pungentes, de suas próprias experiências.

*Jornalista e escritor

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