Entre realidade e ficção

Por Álvaro Caldas

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ENTRE REALIDADE E FICÇÃO

Os primeiros cem anos do múltiplo Millôr Vão Gogo

Publicado em 17/08/2023 às 15:53

Millôr por ele mesmo Reprodução

Conheci Emmanuel Vão Gogo antes de Millôr Fernandes, nas páginas do Pif-Paf na revista semanal O Cruzeiro. Era garoto, morava em Goiânia e a revista chegava lá. Eu abria e ia direto para a seção daquele maluco engraçado, rir dos seus personagens e do non sense de suas historinhas do Teatro Corisco, geralmente em dois atos, pano rápido. Divertia-me com os desenhos de seus tipos, pessoas bizarras com ares de insolência, iniciando a criação de um estilo que se tornou inconfundível.
Era arisco o Teatro Corisco. Como essa conversa entre dois políticos que apóiam o regime. Primeiro personagem: - Bem, quando percebi que o negócio era sujo, me afastei. Segundo personagem: - Com quanto? (Pano rapidíssimo.)

Emmanuel Vâo Gogo assinava a coluna Pif-Paf na revista, onde mesclava pequenas histórias e desenhos com piadas. Criou o famoso Retrato 3 x 4, uma composição com desenhos caricatos, brincadeiras, apontamentos, e uma boa dose de autoironia. Será que ele está falando dele mesmo? Ficava imaginando como podia ser na real um cara com esse nome, Vão Gogo, com essa verve engraçada, que se dizia do Meyer, subúrbio do Rio.

Macaque in the trees
Millôr por ele mesmo (Foto: Reprodução)

No período de 1945 a 1962, O Cruzeiro passou de 11 mil exemplares para uma tiragem de 700 mil. Impressionante. Era uma publicação de grande alcance popular, com variadas seções de humor e grandes reportagens. Tinha o “Amigo da Onça”, famoso personagem do Péricles, e a página de outro gênio do desenho e da caricatura, Carlos Estevão, com o “Dr. Macarrão, um figurão”.

De modo que quando vim para o Rio no início dos anos 1960, para estudar, trabalhar e, enfim, acabei fazendo subversão, já sabia que Vão Gogo tinha saído de cena e virado Millôr Fernandes, seu nome verdadeiro. Esta troca se dá em 1963, quando ele foi afastado da revista em virtude da polêmica causada pela publicação da sua “Verdadeira História do Paraíso,” 12 páginas da história bíblica da criação do mundo, considerada por demais ofensiva pela Igreja Católica.

Deste escândalo só me lembro do quadrinho quando é dito o primeiro palavrão no Paraíso. Cito de memória. Adão descuidado, caminhando ao lado de Eva, tropeça numa pedra e solta o grito de dor: “Puta que pariu!” Pressionados por todos os lados, os editores despacharam o indomável e insubmisso artista, apresentando um pedido de desculpas a seus leitores furiosos.

Indignado, Millôr juntou um grupo de humoristas amigos, entre eles Claudius, Fortuna, Jaguar e Ziraldo e lançou uma versão ampliada em novo formato do Pif-Paf, agora uma revista independente, as vésperas do golpe militar de 1964. A publicação brigou com a censura o tempo todo e durou apenas oito números, Logo na epígrafe do primeiro, vieram seu dístico do “Livre pensar é só pensar”, e uma pequena provocação aos puritanistas: “Não conheci ninguém que não tivesse a obsessão do sexo”.

O Pif-Paf de Millôr foi para as bancas com uma carta de princípios. “Jamais esqueceremos o fundamental: da vida ninguém escapa (...) Pretendemos meter o nariz exatamente onde não formos chamados.

Humorismo não tem nada a ver e não deve, absolutamente, ser confundido com a sórdida campanha do “Sorria Sempre.” E com a seguinte linha editorial: “Esta revista será de esquerda nos números pares e de direita nos números ímpares. As páginas em cor serão naturalmente reacionárias, e as em preto e branco populistas e nacionalistas”.

Em mais de 70 anos de produção, Millôr Fernandes (1923-2012) rodou a grande imprensa quase toda. No “Jornal do Brasil” esteve duas vezes, a última em junho de 2001, quando voltou como colunista. Passou pelo Globo, Folha, Veja, e participou da fundação e das batalhas de humor crítico e jornalístico de O Pasquim, o mais popular tabloide publicado durante a ditadura. Talvez o jornalista de humor mais visado e cortado pelos censores.

Seu humor gráfico tinha uma visão aguda da política e da tragédia brasileira. Sua ambição intelectual não se restringiu às artes visuais. Foi dramaturgo, tradutor, escritor. O Instituo Moreira Salles, onde sua obra gráfica está depositada, fez em 2013 uma exposição reunindo 500 dos mais de 6 mil originais que estão sob sua guarda. Deixou um legado imenso, “obra de um autor autodidata cético e individualista, e acima de tudo indomável”, segundo o jornalista Paulo Roberto Pires, que esta fazendo sua biografia.
A eles, Vão Gogo, Millôr Fernandes e os demais personagens representados no guru do Meyer, nossas homenagens neste primeiro centenário de nascimento, comemorado dia 16 de agosto.

*Jornalista e escritor

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