Entre realidade e ficção

Por Álvaro Caldas

ENTRE REALIDADE E FICÇÃO

Não chores pela democracia na Argentina de Evita

Publicado em 02/11/2023 às 14:31

Alterado em 02/11/2023 às 14:42

A eleição presidencial argentina, considerada a mais importante desde que o país recuperou a democracia, em 1983, caminha para uma definição. Sergio Massa, formado nas bases do velho peronismo de esquerda, ministro de uma economia falida por crises sucessivas, abriu 11 pontos de vantagem nas últimas pesquisas sobre o caótico extremista de direita, Javier Milei.

A um passo de ampliar sua vitória no segundo turno, no dia 19 de novembro, Massa sinalizou que não seguirá a cartilha kirchnerista e fará um governo de unidade nacional. Com isto, se afasta de Alberto Fernandéz e de Cristina Kirchner e se aproxima de uma posição majoritária distante dos extremos, que considera Milei sinônimo de instabilidade e caos social. A Argentina quer sair da crise e manter a pluralidade e a democracia.

evita discursando
Foto: Getty Imagens

Neste momento, ressoam pelo país os ecos do musical “Evita”, com o clássico “Não chores por mim Argentina”, canção inspirada na admiração e amor que as pessoas do povo sentiam por Evita, que se tornou um ícone da luta pelos direitos das mulheres e dos pobres. Uma mensagem poderosa que emociona e permanece como exemplo de perseverança e determinação para muitas pessoas até hoje.

A Argentina é um país grande, diverso e complexo, com um nível cultural e educacional elevado, superior ao de seus vizinhos. Criou um sindicalismo atuante e forte, com uma aguerrida tradição de lutas sindicais. Forjou ídolos como Gardel, Maradona e Messi e uma literatura em que se destacam expoentes como Borges, Cortázar e Sabato.

Sentem que Javier Milei aponta perigosamente para a destruição do país. A vitória de Massa no segundo turno preserva a pluralidade deste imenso patrimônio histórico e desmonta as pontas de um ameaçador processo de destruição, como tantas vezes já ocorreu. E que esteve muito perto de acontecer no Brasil, com a reeleição de um capitão extremista e cafajeste para a presidência.

Na tempestuosa história da Argentina, grandes crises costumam ter desfecho dramático, com conseqüências desastrosas ou catastróficas. Como aconteceu com o sumiço do corpo embalsamado dela, Eva Perón, a Evita, da sede da CGT, em 1955. Episódio que mobilizou o país e quase desencadeou uma guerra civil. Mais tarde, transformado num conto magistral pelo escritor e militante político Rodolfo Walsh, assassinado pela ditadura.

“Essa mulher”, o titulo do conto que deu nome ao livro da editora 34, no Brasil, continua a nos interpelar com seu mistério e sua extrema tensão. Walsh cria um duelo verbal violento em torno de um cadáver ausente e inominável, que se reporta à tragédia de todo um povo.

Atravessando novamente um momento de grande ebulição política e econômica, os argentinos certamente devem se lembrar do governo neoliberal de Fernando de la Rúa, no ano de 2001, quando foram às ruas em massa gritando "Que se vayan todos". Impactados por privatizações, demissões em massa, pela dívida com o FMI e pelo confisco bancário, conhecido como corralito, o povo se viu sem saída.

Evita e Peron
Foto: Getty Imagens

Saques a supermercados ocorriam diariamente e greves se tornaram cotidianas. A magnitude dos protestos tornou inevitável a renúncia de De la Rúa, que fugiu de helicóptero da Casa Rosada. Uma cena cinematográfica. Os argentinos que viveram 2001 sabem a proporção que uma crise pode assumir.
Milei e seus apoiadores, Mauricio Macri e Parricia Bullrich querem acabar com o kirchnerismo, levando junto o regime democrático. Sua proposta econômica, baseada na dolarização da economia, é vista como inviável e alto grau de desconfiança por economistas dentro e fora do país.

Advogado de profissão, Sérgio Massa, 51 anos, 30 deles dedicados à carreira política, já foi descrito pela imprensa como carismático, pragmático e ambicioso. Em julho do ano passado, abandonou a Presidência do Congresso dominado pelo peronismo para embarcar no gabinete Fernández-Kirchner. Deu o salto para a política nacional em 2013 com sua Frente Renovadora, espaço dentro do peronismo que se apresentou como uma alternativa ao governo de Cristina Kirchner, de quem havia sido chefe de gabinete e que hoje o apóia novamente.

Por duas vezes foi eleito prefeito da cidade de Tigre, nos arredores de Buenos Aires, pela aliança da então presidente Kirchner. Ministro da Economia de um país com uma inflação anual em 140%, Sergio Massa tentar convencer o eleitorado de que é qualificado para enfrentar a crise e evitar que o país caia nas mãos de um irresponsável com pendores fascistas. 52% dos argentinos são favoráveis à formação de um governo de unidade nacional.

Os eleitores vão às urnas no domingo, dia 19, ao som de “Não chores por mim Argentina”, uma canção que transcende barreiras culturais e geográficas, que se transformou num marco da história do país.

 

*Jornalista e escritor

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