Entre realidade e ficção

Por Álvaro Caldas

ENTRE REALIDADE E FICÇÃO

As cotas diante do racismo institucional brasileiro

Publicado em 16/11/2023 às 17:38

Alterado em 16/11/2023 às 17:38

. Foto: reprodução

É uma questão de cor, de luta para reduzir uma imensa desigualdade e de abrir as portas do conhecimento para os pretos. Lula sancionou projeto que garante a prorrogação da lei de cotas raciais por mais dez anos. Até 2033, 50% das vagas das universidades federais serão destinadas a pretos, pardos, quilombolas, indígenas e pessoas com deficiência egressas de escolas públicas.

O ato é revelador de que uma parte da sociedade branca já admite o sufocamento das histórias e de vidas negras pelo racismo institucional brasileiro. O texto da lei avança ao incluir os quilombolas e cursos de pós-graduação. Os primeiros 10 anos da lei, completados em 2022, contribuíram para amenizar o retrato das universidades públicas, tornando-as mais plurais e multiétnicas.

A Lei de Cotas constitui um marco importante na luta pela inclusão e garantia de direitos de pessoas negras e indígenas. O processo de negociação andou lentamente, interrompido e boicotado em vários momentos. Um trabalho iniciado pelo Movimento Negro e pelo Movimento de Mulheres Negras, na década de 1990.

Pressionando os poderes da República e ao mesmo tempo abrindo um debate com a opinião publica, com a participação de intelectuais e artistas negros, para a adoção de ações afirmativas como estratégia de combate às desigualdades raciais.

A educação antirracista constitui um enorme desafio. O combate ao racismo dentro das escolas é outro tema tratado com muita timidez. Na prática, faltam formação e técnicas mais eficientes por parte dos educadores, Salas de aula e as comunidades são lugares de excelência para trabalhar pautas antirracistas. O racismo está enraizado na sociedade e somente ações de impacto na educação podem reverter a situação.

Segundo especialistas da ONG Nova Escola, as escolas costumam ser uma porta de entrada para experiências racistas de crianças, que lá se deparam, pela primeira vez, com práticas discriminatórias por parte de colegas, professores, funcionários e pais.

O ódio vinculado ao racismo brasileiro, associado às desigualdades sociais, desde sempre cerrou as portas da universidade para negros e pobres. Trata-se de uma longa história de segregação. Para revivê-la em toda sua dimensão é preciso mesclar a realidade com a imaginação, trazida pelas artes da literatura, em especial a de autores negros.

Até hoje é muito reduzida a relação de livros de mulheres e escritores não brancos exigidos ou citados pelas universidades em seus exames. O romance “Um defeito de cor”, escrito pela mineira Ana Maria Gonçalves, publicado pela primeira vez em 2006, ignorado durante anos pela crítica, pode servir de exemplo.

Ao longo de 952 páginas, ele constrói a odisséia de Kehinde, personagem nascida no reino de Daomé, sequestrada e traficada ainda na infância para ser escravizada no Brasil, junto à irmã e a avó, que morrem durante a travessia. Kehinde desembarca na Bahia.

Escrito na primeira pessoa, o livro é revelador do processo de escravização a partir de uma voz feminina, que vivencia na pele os desdobramentos cruéis da escravidão do período. A autora entrelaça a narrativa da personagem com fatos históricos.

Considerado um clássico da literatura afro-feminista brasileira, “Um defeito de cor” mistura ficção e não-ficção, privilegiando de forma intimista a descrição dos fatos, que formam um diário de memórias da brutalidade da escravidão brasileira, que raramente é contada da perspectiva dos vencidos.

Itamar Vieira Júnior, de “Torto Arado”, o escritor mais aclamado e vendido no Brasil hoje, definiu o livro de Ana Maria como o romance brasileiro mais importante no século 21. Juntas, suas obras são exercícios de criação que podem compensar a ausência de narrativas negras, sufocadas pelo racismo institucional. Somente a partir de 2010 uma onda de autores negros, mulheres no primeiro plano, começou a chegar às livrarias, rompendo o racismo existente no meio literário.

As primeiras universidades estaduais a adotar cotas raciais foram a Universidade do. Estado do Rio de Janeiro (UERJ), a Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (UENF) e a Universidade Estadual da Bahia (Uneb), em 2002. Outras instituições públicas de ensino superior criaram sistemas internos de cotas raciais, direito conquistado pela combativa luta travada por estudantes e docentes negros, por integrantes dos Núcleos de Estudos Afro-Brasileiros.

Em 2003, a Universidade de Brasília (UnB) foi a primeira federal a criar um sistema de cotas raciais. Para expandir e consolidar a luta contra o racismo na educação, entidades e movimentos precisam pressionar o governo para garantir recursos para políticas de permanência de estudantes cotistas. Mais do que bolsas de manutenção, rede de apoio deve incluir o provimento de restaurantes universitários, moradia estudantil, creche e bolsas de iniciação científica. As cotas abriram espaço para que a arraigada e silenciosa história de destruição do racismo brasileiro saísse das sombras.

*Jornalista e escritor

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