O que falam as rosas
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Em uma das últimas viagens que fiz antes da pandemia, conheci a região vinícola do sul do país. Na peregrinação pelas casas vinícolas, notei que quase sempre os vinhedos eram rodeados por lindos roseirais, o que conferia um cuidado estético especial às plantações tão geometricamente ordenadas. Achei curioso que, mesmo diante do trabalho árduo da viticultura, a beleza não tenha sido deixada de lado.
Ignorante dos meandros da viticultura, fiz um comentário elogioso sobre esse cuidado com o simpático jovem membro da terceira geração de uma casa vinícola que nos ciceroneava. Aprendi então que, para muito além de embelezarem os vinhedos, as rosas tinham uma função vital no manejo da plantação: as pragas que podem destruir as uvas atacam primeiro os roseirais, que funcionam como uma forma de aviso de perigo, dando tempo de o viticultor agir para que a plantação inteira não seja atacada. A sensibilidade das rosas protege os vinhedos.
Na experiência cotidiana, na clínica psicológica, são muitas as vezes em que os membros mais sensíveis de uma família, de uma empresa ou os membros mais sensíveis da nossa sociedade adoecem, e pelo seu adoecimento “avisam" que algo vai mal em um grupo. Eles são os radares que detectam um mal-estar coletivo. O psiquiatra argentino Henri Picho-Rivière afirmava que essas pessoas transformam-se nos "porta-vozes" das tensões do grupo. São as rosas que falam.
Nosso poeta Cartola, queixando-se de seu sofrimento às rosas, lamentou que elas não falassem. As rosas do jardim do poeta não tinham palavras para consolar a sua dor, mas talvez não seja tão bobagem assim falar às rosas e, sobretudo, ter paciência para escutá-las. As rosas primeiro sentem, mas se tiverem oportunidade de se expressar, elas deixam de falar pelo adoecimento e começam a encontrar nas suas próprias palavras e imagens, o caminho para voltar a florescer.
Nas famílias são as crianças e os adolescentes, geralmente os membros mais sensíveis, que por meio de seus sintomas pedem socorro e gritam que o sistema familiar como um todo está vivendo uma fase de estresse aumentado que precisa de atenção. É possível destacar alguns desses sinais de aviso que as crianças e os adolescentes dão: enurese, agressividade desmedida, queda abrupta no rendimento escolar, medo intenso, insônia, distúrbios alimentares, episódios de auto-mutilação, isolamento social, entre outros. Estes são alguns dos mais frequentes pedidos de ajuda. São rosas exalando a instabilidade ou tensão que estão captando no ambiente. Mas sobretudo, são as rosas demandando atenção e cuidado.
Nas empresas, o ritmo intenso, a competitividade e, mais recentemente, as tensões decorrentes do home-office forçado da pandemia têm aumentado a pressão e a jornada de trabalho, afetando a todos. No entanto, os membros mais sensíveis são justamente aqueles sobre os quais se deposita as maiores esperanças de renovação e inovação: os jovens profissionais. Uma pesquisa publicada na Harvard Business Review mostra que 50% dos jovens da chamada Geração Millenial e 75% dos jovens da chamada Geração Z já abandonaram empregos ou funções por problemas relacionados à saúde mental. Durante a pandemia pude constatar na minha prática clínica o aumento dos casos de burnout e de crises de ansiedade ligados ao trabalho, atingindo primeiro os jovens profissionais, mas logo em seguida se espalhando para outra faixas etárias e níveis hierárquicos. Os roseirais estão na linha de frente e antecipam o adoecimento da cadeia.
Por que na viticultura as rosas funcionam desde o século XIX até os dias de hoje como sinal de alarme? Porque as uvas são tão sensíveis quanto as rosas. Elas são diferentes apenas na aparência, mas sofrem igualmente dos mesmos males. Da mesma forma, nos grupos humanos todos somos suscetíveis aos ataques à nossa saúde mental, alguns de nós, apenas captam antes aquilo que pode afetar os demais.
A pandemia colocou o tema da saúde mental na sala de estar das casas e nas salas de reunião das empresas. Se formos viticultores atentos saberemos que rosas e uvas fazem parte de um mesmo sistema e cuidaremos de ambas com sensibilidade e responsabilidade, e para isso é importante estar atentos e não minimizar ou ignorar os sinais.
No final do passeio na vinícola meu guia disse que seu seu maior sonho era trabalhar para que as vinhas que herdou chegassem saudáveis às próximas gerações, pensei comigo que isso incluía, é claro, observar diariamente o que dizem os roseirais.
Flávio Cordeiro - Psicólogo e Psicoterapeuta