Na contramão da História

O santo padroeiro dos motoristas deveria ser Freud e não São Cristóvão. Mas como Freud nunca foi santo, deixa essa missão ingrata para o Cristóvão, mesmo. Acho, e não só eu, que o trânsito sempre foi um retrato fiel do comportamento humano. O jeito como agimos no trânsito demonstra quem somos internamente. E o trânsito, no caso, envolve automóveis, pedestres, coletivos e autoridades.

Dizem que quem tem o pênis pequeno, mas tem posses grandes, acaba querendo um carro que compense, pelo tamanho e pela força do motor. Isso já virou mito. Êpa, nada a ver com o mito, diga-se de passagem, mas já que falamos nele vamos ao que interessa. Essa nova lei do trânsito que ele quer impor é um absurdo de carteirinha, sem trocadilhos. Aumentar a validade da CNH nem é tão grave assim. O buraco está bem mais embaixo, lá na rua. As vias mal conservadas, a falta de educação, de fiscalização e o mau comportamento de motoristas e agentes acabam criando um caos significativo. Radares e lombadas são utilizadas quando o pessoal não foi educado no sentido mais amplo. Não tem como educar então reprime. Não é para alimentar a indústria das multas. As multas são alimentadas por este descaso em relação à educação e a fiscalização.

Achar que Bolsonaro vai substituir as multas pela instrução é acreditar que uma doença pode ser curada informando-se sobre ela. É todo um processo de aprendizado, de civilidade que pelo jeito, pelas decisões que estão sendo tomadas, não vamos atingir tão cedo. Dizer que os pais são responsáveis pela segurança dos filhos nos automóveis cai no mesmo erro de avaliação. Se fôssemos um país avançado, com um índice de desenvolvimento humano de respeito, talvez funcionasse. Mas, mesmo nos países desenvolvidos, somos obrigados a seguir certas regras. Não basta querer ser civilizado. É um caminho longo que na marra não acontece. A multa não educa, inibe. Nos Estados Unidos se você se envolver em algum acidente tendo bebido mais do o permitido, vai preso. Se for estrangeiro, volta pro seu país ou quase. Aqui você mata dirigindo e permanece solto. E até agora só falamos de um comportamento social.

No privado, o ato de dirigir reflete quem somos ou como estamos. A frustração, a agressividade do dia a da se instala atrás do volante e salve-se quem puder. Já repararam que ninguém aceita críticas do vizinho ao dirigir, mesmo que seja evidente o erro? Bota logo o dedo agressivo pra fora da janela, quando não bota uma arma. Os motoristas de ônibus dirigem com a mesma tristeza e dificuldade que vivem o seu cotidiano. Reclamar no trânsito é uma constante. Sentir raiva, uma ilusão de compensação Chegamos em casa cansados e derrotados pelas ruas, pelos engarrafamentos e pela selvageria. Vale tudo e a solidariedade, senso do coletivo, tão necessárias ao trânsito são esquecidos para sempre.

Tentar resolver os problemas pessoais (a família Bolsonaro é colecionadora de multas) se fazendo de paladino às avessas não vai longe. Um mínimo de sensatez de quem tem que aprovar vai frustrar esses planos do Seu Jair. Não ficamos indignados pelas multas mas sim pela desorganização do aparato do Estado nessas cobranças, o que faz parte de todo aquele processo civilizatório de que falamos antes. Afagar a cabeça dos caminhoneiros com o relaxamento de exames antidrogas não vai melhorar a vida deles. Vão ter continuar dirigindo por horas a fio se enchendo de pílulas e morrendo sem controle. Melhorar as estradas seria mais útil mas custa dinheiro e é menos demagógico.

Estamos vivendo um momento em que tudo aquilo que alcançamos de bom nos últimos anos, mesmo ainda atrasados, está sendo revogado. A última foi a possibilidade de internação de dependentes de drogas sem o consentimento do mesmo o que é uma contradição intencional. Libera os motoristas profissionais do exame mas permite a internação dos dependentes? Está difícil circular pela Brasil, mesmo na cadeirinha.

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