ARTIGOS

Não Matarás

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Por ADHEMAR BAHADIAN

Publicado em 31/07/2022 às 09:44

Alterado em 31/07/2022 às 09:44

Quanto mais dias passam. Quanto mais assistimos as violências da Guerra da Ucrânia. Quanto mais nos comovemos com o tratamento desumano a imigrantes, sobretudo em países que se arvoram defensores dos direitos humanos. Quanto mais nos envergonhamos com os disparates diários de altas autoridades no Brasil, mais me convenço estarmos no limiar de uma profunda guinada em direção a uma sociedade justa, democrática e menos desigual.

Nos Estados Unidos da América as engrenagens da Justiça começam a se mover de forma lenta porém certeira. As revelações assustadoras sobre as manobras cínicas, quase psicóticas, de Donald Trump, no 6 de janeiro de 2021, tornam insustentáveis as supostas alegações de que Trump teria agido com o mais ínfimo respeito à Constituição, à dignidade de seu povo, mas, ao contrário, o teria feito tangido por uma sede de poder incestuosa, das mais lúgubres da história.

A sociedade brasileira sai de seu estupor e manifesta definitiva repulsa aos que buscam imitar no país o mesmo cenário do 6 de janeiro. A rejeição a esta manobra, descabida no fundo e na forma, ultrapassou as fronteiras nacionais e motivou claras advertências de nossos maiores parceiros econômicos sobre a inviabilidade de sequer considerarem o movimento negacionista brasileiro com qualquer fímbria de veracidade. Nunca a sintonia entre a democracia brasileira e as democracias ocidentais foi tão fina, tão eloquente, tão enfática.

Certamente dentre as razões a motivar a atitude decisiva de nossos parceiros avulta a convicção de que a história já nos ensinou sem rebuços aonde nos leva a senda totalitária, hoje visível em países antes insuspeitos de trilharem as mesmas tortuosas vias de um Hitler ou de um Mussolini.

O exemplo mais óbvio e mais chocante nos vem da Hungria, onde o títere Orban teve a impensável infelicidade de levantar neste século 21, ideias surradas de povo eleito por seu sangue único, supostamente puro e portanto ungido por forcas sobre-humanas para almejar uma higienização do mundo. Hitler, com a mesma teoria e auxiliado por um bando de sádicos pseudo-cientistas, tingiu de sangue hebreu a terra da Alemanha nazista e dos Estados subjugados na Segunda Guerra mundial.

A fraqueza do totalitarismo de qualquer espécie é sua estereotipada doutrina, quando cotejada com o avanço da tecnologia e da ciência modernas. A ressurgência de conceitos como o de raça pura é sempre regressiva e ceifadora de liberdades sem as quais o homem se animaliza e a sociedade afunda na barbárie.

Veja-se que Victor Orban apenas depois de manietar a imprensa, o judiciário, durante anos e de cercar-se de uma polícia subserviente e de assessores sem coluna vertebral sente-se seguro para pisar no terreno da raça-pura, isca putrefata para um povo submetido a mentiras ideológicas e credos ímpios.
É igualmente notável que os totalitários de sempre busquem acrescentar ao “Pão e Circo” dos Neros a dimensão religiosa associada ao poder civil. Desta forma, engabela-se o povo com os sentimentos mais atávicos em toda a humanidade: o da identidade nacional com a essencialidade espiritual a um Deus a serviço da máquina totalitária.

Esta combinação malévola foi condenada no nascedouro por Cristo ao responder a provocadores “a Cesar o que é de Cesar; a Deus o que é de Deus”. Nada poderá ser mais claro aos cristãos de que a apropriação da fé religiosa como instrumento político é condenada pelo Cristianismo, católico ou não.

Porém, infinitamente mais grave será tentar atrair o povo de Deus - católicos, cristãos ou não - para os morticínios políticos. O “não matarás” é um mandamento que nos obriga a todos pelo simples fato de que a vida espiritual é dom maior da fraternidade. E a sugestão de que os inimigos políticos devam ser mortos é sem dúvida o maior sacrilégio a impor a cristãos.

Há portanto muito a cuidar diante de falsos profetas que atraem pelo medo, pela subversão do sentimento religioso a serviço da mesquinhez política. Trumpista, vale dizer psicoticoforme, em essência
O povo brasileiro sabe que neste ano de 2022 se abrem diante dele duas estradas em direção ao futuro. A primeira delas será a de persistir na falida teoria econômica dos últimos quarenta anos em que a mão invisível de Adam Smith foi substituída pela mão armada dos Dom Corleones.

A segunda estrada nos levará inevitavelmente a uma sociedade mais solidária sem que os andrajos da escravidão histórica nos assustem na periferia de nossas cidades com a escandalosa desigualdade social em nosso país.

Aos manifestos de repúdio aos ataque à nossa Democracia deve seguir-se a firme determinação da sociedade brasileira de retomar o compromisso com o desenvolvimento econômico, respaldado na dignidade da vida de todo cidadão como nos impõe a Carta Constitucional de 1988.

Escrita e assinada tendo bem presente os malefícios de ditaduras, sempre opacas ao debate amplo, livre e democrata.

*Embaixador aposentado

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