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Tiros na democracia

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Já não se trata de polarização raivosa entre direita e esquerda, de  xingamentos horríveis pelas redes sociais, de enfrentamentos em manifestações, intolerância aguda e desqualificação do outro. Os tiros contra a caravana do ex-presidente Lula informam que na política o  ódio subiu um degrau, que a barbárie chegou, liberando a disposição para matar o adversário, ao invés de tentar derrotá-lo nas urnas ou de esperar (e respeitar) decisões da Justiça.   Assim fizeram com Marielle Franco, tentaram fazer com Lula, talvez queiram fazer com o ministro Fachin.  Enquanto isso, pobres e policiais tombam todos os dias, na guerra urbana imposta pelo crime.  Este atentado à democracia exige resposta das autoridades mas cobra também uma reflexão sobre a responsabilidade de cada  um na semeadura do ódio. Inclusive da mídia.  

Quando, no primeiro momento, o presidenciável Geraldo Alckmin disse que o PT “colhe o que plantou”, fez como os disseminadores de fake News contra Marielle: culpa da vítima, que fez por merecer.  Depois ele tentou consertar mas o líder do PSDB, deputado Nilson Leitão, disse sem rodeios suspeitar que os tiros tenham sido uma armação dos próprios petistas.  “Eles são capazes de tudo”, disse ele.  Passou-se uma noite e longas horas até que outros candidatos, entre eles o presidente Temer, reconhecessem e condenassem o atentado. O ministro da Segurança, Raul Jungmann, informou que não colocaria a Polícia Federal no caso por não se tratar de crime federal. Houve  uma hesitação inicial das mídias em registrar o fato. Este tratamento dado ao fato é indicador de como nossa elite política negligencia a questão democrática por conta de seus antagonismos. Os tiros contra a caravana de Lula não são um problema do PT, como a morte de Marielle também ultrapassa o PSOL. Seria igualmente grave se tivessem sido contra outro líder, em atividade que a Constituição protege (o direito de ir e vir e a liberdade de expressão).   Foram tiros contra a democracia,  e exigem que cada um diga de que lado está: da civilização, da democracia ou da volta à barbárie, que pontua o passado político brasileiro. 

Com a apuração e a punição, dentro da lei, as forças comprometidas com  a democracia, que nos custou tanto erigir, apesar de suas imperfeições, precisam dizer ao exaltados que a disputa política não será resolvida pela força bruta, que a selvageria política não será tolerada.  Aliás, em boa hora o presidente Temer mandou o ministro Eliseu Padilha desmentir que  seus assessores tenham dito que neste clima as eleições podem não acontecer. Mas este atentado deveria propiciar também um exame de consciência sobre a contribuição de cada um, na esfera pública, para a disseminação do ódio que adubou o espírito do fascismo, do “pega, mata e esfola”. O PT tem sua cota de responsabilidade na polarização mas não a construiu sozinho.  O PSDB é igualmente responsável pelo “clima de uns contra os outros” a que se referiu Temer, como se seu MDB também não tivesse ajudado,  ao derrubar Dilma com a base jurídica frágil das pedaladas fiscal. As pontes na política ruíram aí. 

Da mídia também jorrou muito ódio, e isso precisa ser admitido. Já houve capa de revista com a cabeça de Lula cortada e pingando sangue.  Nas manifestações contra o impeachment, figuras representando Lula e Dilma decapitados foram divulgadas à exaustão.  Desde 2005, quando eclodiu o mensalão, o PT foi espezinhado pela queda na corrupção, mas outros partidos foram poupados, pelo menos durante um bom tempo.  A indulgência para com os abusos da Lava Jato foi absoluta. As instituições vêm sendo desmoralizadas faz tempo, inclusive o STF, num repique agudo agora, por ter concedido habeas corpus provisório a Lula. Aliás, estes tiros foram também contra o STF.  Devíamos todos nos perguntar: Como contribuir para que o Brasil chegasse a este ponto?