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Impeachment em dissensão

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Nas crises multidimensionais, tudo que é sólido se desmancha no ar, principalmente quando o conflito paroxístico hipertrofia o campo da política. Essa ideia da volatilidade gerada pela crise está em Marx e Engels, em obra na qual, ao analisarem a revolução burguesa na Europa e as contradições do capitalismo, explicam a história pela luta de classes. Controvérsias à parte sobre as classes sociais, há acentuadas clivagens políticas delineadas na aguda crise brasileira, como as que opõem governistas e oposicionistas, petralhas e coxinhas – entre os últimos, muitos empresários – e contrários e favoráveis ao impeachment. O que está em jogo no Brasil não é a revolução burguesa pioneira e nem o socialismo, mas a disputa entre modelos de capitalismo, marcada pela agressiva ofensiva das forças e interesses neoliberais contra a experiência social-desenvolvimentista e sua liderança política. Por outro lado, a resistência democrática está crescendo. No centro da disputa está não apenas o governo Dilma, mas a redefinição das bases sociopolíticas e institucionais de sustentação do poder de Estado.

Em relação ao impedimento da presidente Dilma Roussef – emergido como a principal clivagem conflitante e impactante na conjuntura, mais ampla que as duas primeiras –, o entendimento da aplicabilidade desse dispositivo constitucional à crise atual, pelos atores políticos da trincheira oposicionista, está sob intensa volatilidade interpretativa. Mas uma novidade muito importante é que vozes dissonantes na opinião pública, predominantemente informada pela grande mídia golpista, vêm trazendo pluralismo a um campo temático até então intoxicado pelo monólogo conservador e direitista a favor do golpe parlamentar. Um pluralismo que reforça o respeito às regras da democracia.

Pela Lei nº 1.079/1950, do impeachment, a aprovação dessa medida, decisão política extrema tomada pelo Poder Legislativo, deve alicerçar-se em um elemento jurídico, o crime de responsabilidade. O impedimento tem um duplo e inseparável caráter, político e jurídico. O pedido de impeachment em tramitação na comissão especial da Câmara dos Deputados se baseia em três pontos: decretos orçamentários, pedaladas fiscais e corrupção na Petrobras e no governo. Ambos os lados formulam argumentos para sustentar sua posição e defendê-la contra a do adversário.

Falando a favor do governo na Comissão do Impeachment, o ministro Nelson Barbosa esclareceu os dois primeiros pontos. Os decretos de crédito suplementar estavam previstos no Art. 4º da lei orçamentária nº 13.115/2015 e não alteraram as medidas de contingenciamento então em vigor. Em relação às pedaladas fiscais, Barbosa argumentou que, uma vez estabelecido o acórdão do TCU sobre as contas de Dilma de 2014, o governo mudou imediatamente as metodologias de pagamento de equalização de taxas de juros e de reembolso do FGTS e pagou todos os valores de exercícios fiscais anteriores apontados pelo órgão de controle. Cabe acrescentar que, apesar do TCU ter sugerido, em outubro de 2015, que o Congresso Nacional rejeitasse as contas de 2014 do governo federal, o relatório da Comissão Mista do Orçamento, assinado pelo senador Acir Gurgacz (PDT-RO), propõe sua aprovação com ressalvas. Em relação à corrupção, o pedido é genérico: “a responsabilidade da denunciada quanto à corrupção sistêmica de seu Governo é inegável”. Na verdade, Dilma não está sequer sendo investigada, muito menos denunciada por envolvimento com corrupção.

No mínimo, há uma crescente divergência entre os especialistas sobre a existência de crime de responsabilidade que dê base legal ao processo de impeachment.  Editorial da Folha de S. Paulo do último domingo considera que nenhum motivo para o impedimento é irrefutável, pois “falta, até agora, comprovação cabal”. A politização da interpretação da aplicabilidade do impedimento à presidente Dilma é a expressão político-parlamentar de toda uma ampla politização em curso no Brasil, que tem tornado voláteis direitos civis, procedimentos como condução coercitiva e prisão preventiva, lei da escuta telefônica etc. O Estado da Lei está sob pressão autoritária de massas, apoiada na parceria jurídico-midiática de combate seletivo e espetacular à corrupção, que se desdobra na convocação e divulgação televisivas dos protestos de rua promovidos por uma nova direita organizada, que clama por uma justiça justiceira.

Está em curso, por um lado, uma reação termidoriana que, visando frear e derrotar a revolução democrática que ocorria dentro da lei, pisoteia a ordem legal com as patas do autoritarismo.  Dois braços, o da Lava Jato e o da deposição da mandatária eleita, por impeachment, cassação de mandato ou renúncia, fazem parte do mesmo corpo, cuja cabeça-síntese é a coalizão neoliberal. Por outro lado, a resistência democrática vem emergindo.

O pleno do STF, por exemplo, aprovou a liminar acatada pelo ministro Teori Zavascki, referente a uma reclamação da AGU contra as irregularidades nas escutas telefônicas de Lula e Dilma. Cabe agora ao STF decidir se se encarregará da investigação sobre Lula ou ela prosseguirá com o juiz Sergio Moro. Em sua decisão, Zavascki criticou com vigor a divulgação dos grampos telefônicos. O juiz esperto pediu desculpas ao STF pelo ato ilegal, mas aumenta a percepção de que sua atuação é partidarizada e pleiteia-se sua punição. Em 31 de março, centenas de milhares de manifestantes foram novamente às ruas, nas principais cidades do país. E não só convocados pelo PT e PCdoB, mas também pelo PSOL, por intelectuais, artistas, ativistas de redes sociais, movimentos sociais de esquerda e assim por diante. Há reações internacionais de jornalistas, intelectuais e políticos contra o risco à democracia existente no país. Além disso, Lula tem atuado nas frentes social e institucional para derrotar o impeachment, mais provável de acontecer devido à saída do PMDB da base governista.

Uma frente-chave da disputa política diz respeito à legitimidade das ações dos atores, estrategicamente orientadas visando fortalecer seus interesses e posições de poder através do convencimento, da hegemonia ideológica. Na terminologia de Gramsci, o país está, como nunca antes na história, em “guerra de posição”. Legitimidade é um elemento fundamental da dominação política. O fato de defensores do golpe parlamentar pseudo-constitucional buscarem legitimação para sua ofensiva autoritária em manifestações de rua frequentadas majoritariamente por brancos com renda alta, muitos dos quais desdenham dos direitos civis e apoiam Eduardo Cunha e outras lideranças envolvidas em escândalos, desde que seja para “derrotar o PT”, mostra muito de seu caráter oligárquico-urbano e permite projetar o modelo de ordem social e política que vislumbram no horizonte. Outros tantos, também defensores do golpe, rejeitam todos os partidos e políticos e evocam salvadores da pátria, como Moro ou algum oficial militar. Uns e outros têm destilado o ódio e a intolerância, estimulam a reversão da revolução democrática pela contrarreforma conservadora.

Na polarizada batalha do impeachment, além da volatilidade das instituições democráticas, também está em jogo o estancamento ou não da volatilidade regressiva dos pobres, já em andamento com a crise. Aumentará a miséria? Além disso, está em questão o quanto a sociedade brasileira quer volatilizar valores como estabilidade e tolerância políticas. Cresce o contingente dos que avaliam que o maior bem-estar para a maioria das pessoas aponta para a fidelidade às instituições do Estado Democrático de Direito e para o urgente fortalecimento da dissensão contra a volatização do impeachment, bomba já acionada, ora em contagem regressiva.

* Marcus Ianoni é cientista político, professor do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense (UFF), pesquisador das relações entre Política e Economia e Visiting Researche Associate da Universidade de Oxford